Reprodução
PlayStation e pai: a trajetória de Ken Kutaragi na Sony
Brilhante e de gênio difícil, o engenheiro que deu vida ao console da Sony tem legado complexo
Na história da indústria de games, poucas pessoas causaram tanto impacto, direta ou indiretamente graças a seu trabalho, do que Ken Kutaragi.
Em 3 de dezembro de 1994, após tantos percalços, o engenheiro veterano da Sony finalmente conseguiu realizar seu objetivo de lançar um console pela empresa — Não só isso, o PlayStation tornou-se a força dominante daquela geração de consoles, superando com folga o Nintendo 64 e o Sega Saturn em vendas.
Durante a década seguinte, Kutaragi ajudou a sacramentar a Sony como potência na indústria com o PlayStation 2 — até hoje o console mais vendido de todos os tempos —, e chegou até a ser considerado o futuro líder da companhia. Porém, uma série de erros estratégicos, junto com os tropeços do desenvolvimento PlayStation 3, impediram que ele alcançasse o posto máximo da empresa.
Ainda assim, foi elogiado por sua visão e foco em inovação, e criticado por seu jeito agressivo e natureza irascível. Kutaragi é uma figura complexa, com um histórico longo e curioso, dentro e fora da indústria de games.
A origem
Ken Kutaragi nasceu em 2 de agosto de 1950 em Tóquio. Filho de donos de uma pequena gráfica local, o jovem sempre foi incentivado pelo pai de diversas formas, de mexer e desmontar brinquedos e equipamentos até trabalhar na fábrica depois da escola.
Após formar-se em Eletrônica na Universidade de Eletro-Comunicações, nos anos 1970, Kutaragi começou sua carreira na divisão de pesquisa da Sony, trabalhando em projetos como câmeras digitais e telas de cristal líquido.
Mesmo em seus primeiros anos na empresa, o engenheiro ganhou uma reputação tanto por seu talento e habilidade de resolver problemas de desenvolvimento quanto por sua natureza combativa e agressiva, em total contraponto ao que se espera de um funcionário de uma companhia japonesa.
Para a sorte de Kutaragi, porém, a Sony da época era conhecida por um estilo não-convencional, em que códigos de conduta corporativos eram menos importantes do que conhecimento de engenharia. Não só isso, ele também tinha um ótimo relacionamento com o então CEO da empresa, Norio Ohga — relação que, anos depois, seria fundamental para a criação de um console.
A parceria
Em meados dos anos 1980, Kutaragi já havia notado o potencial dos videogames ao ver sua filha jogando um Famicom. Por isso, quando a Nintendo surgiu oferecendo a oportunidade de criar um chip de som para o sucessor daquele console, ele aceitou o projeto — sem contar para seus superiores primeiro.
Na época, a Sony não tinha o menor interesse em investir no setor de games. Por isso, ao ser descoberto, o engenheiro entrou em conflito direto com os executivos da companhia, sendo salvo apenas por Ohga, que aprovou o projeto.
O chip de som, conhecido como SCP700, acabou sendo um sucesso, e formou os elos de uma parceria entre a Nintendo e a Sony por meio de Kutaragi, culminando com o SNES-CD e o Nintendo PlayStation, que pretendia mudar a direção dos consoles da Big N de cartuchos para discos.
Como relatamos em outra matéria, esta parceria acabou por não dar muito certo — pelo menos para a Nintendo.
Em outras circunstâncias, isso poderia significar o fim da carreira de Ken Kutaragi dentro da Sony. Porém, Ohga novamente o salvou de um destino ignóbil, e o projeto PlayStation seguiu em frente.
Virando o jogo
Após uma tentativa fracassada de fazer uma parceria com a principal rival da Nintendo na época, a Sega, a Sony acabou por seguir seu próprio caminho dentro da indústria de games.
Logicamente, Kutaragi chefiou o desenvolvimento do videogame, e sua fama de visionário e de figura difícil ganharam proporções ainda maiores.
Makoto Iwai, executivo da Sony, relatou ao site Polygon em uma matéria dedicada ao legado de Kutaragi, como o chefe costumava tratar seus engenheiros.
"Eles estavam sempre recebendo gritos", relembra. "'Faça acontecer! Não, não, não, não me diga isso! Eu não aceito não como resposta!' Este tipo de coisa era ocorrência diária, mas todo mundo estava meio que acostumado."
"Ele sempre levantava questões de forma emocional", continuou Iwai. "Ele literalmente latia, como Steve Jobs fazia."
As comparações com o cofundador da Apple são constantes, tanto negativa quanto positivamente, como atesta um dos primeiros funcionários de PlayStation nos EUA, Mark Wozniak, irmão de Steve Wozniak.
"Ele me lembrou de um tipo de híbrido entre Jobs e meu irmão, Woz", explica. "Porque ele tinha, sabe, um grande conhecimento técnico, mas também uma tremenda visão para o futuro."
Fossem quais fossem seus problemas de temperamento, Kutaragi provou que o investimento valeu a pena, com o Sony PlayStation tornando-se um sucesso praticamente instantâneo, e dominando o mercado de vendas antes disputado pela Nintendo e Sega.
Com total de 102,49 milhões de unidades vendidas,o PlayStation é o quinto console mais vendido de todos os tempos. Em comparação, o Nintendo 64 chegou a 32,93 milhões de vendas, enquanto o Sega Saturn amargou com apenas 9,26 milhões de unidades vendidas.
Não só isso, a recém-formada Sony Computer Entertainment (SCE), formada para lidar com a área de games da companhia, logo tornou-se o setor mais lucrativo da corporação.
Kutaragi conquistou um nível de prestígio como poucos antes ou depois, seja dentro ou fora da indústria de games, e isso só ficou ainda mais evidente com o lançamento do PlayStation 2, que acabaria por se tornar o console mais vendido de todos os tempos, e o PlayStation Portable (PSP), que encontrou sucesso em um mercado de portáteis essencialmente monopolizado pela Nintendo.
Ele também passou a ser visto como uma figura um tanto excêntrica, conhecida como "Crazy Ken" ("Ken Maluco", em tradução livre) por conta de declarações célebres, como comparar a experiência de jogar o PS2 a "se conectar na Matrix".
Toda esta trajetória de sucesso indicava que o Pai do PlayStation, em algum momento, assumiria o posto máximo como CEO da Sony Corporation.
Mas nem tudo saiu como planejado.
O declínio do Império Kutaragi
Em 2003, Norio Ohga deixou oficialmente a posição de CEO da Sony, privando Kutaragi de seu maior e mais importante aliado dentro da empresa.
O sucessor de Ohga, Nobuyuki Idei, se encaixava em um modelo mais tradicional de executivo japonês, o que logo levou a tensões entre ele e o abrasivo e controverso Pai do PlayStation.
Ao mesmo tempo, Kutaragi passou a ser responsável pela divisão de eletrônicos para consumidor da Sony, que na época passava por problemas com a ascensão de competidores de peso como a Samsung, e até mesmo a Apple com o iPod.
Não só isso, como presidente da Sony Computer Entertainment, ele também estava se envolvendo com a criação e desenvolvimento do PlayStation 3, cujas expectativas eram ainda maiores após o total domínio do PS2 na geração anterior.
O resultado de ambas as iniciativas foi longe do ideal: em um ano e meio como chefe da divisão de eletrônicos, Kutaragi não ajudou a Sony a se reerguer na área. Mais do que isso, ele chegou até a alienar muitos funcionários e executivos - sendo que os últimos geralmente já não eram grandes fãs para começo de conversa.
Já o PlayStation 3, tanto em seu desenvolvimento quanto chegada ao mercado, ficou marcado por controvérsias, desde seu preço de mercado (saindo por US$ 600) até tudo envolvendo o microprocessador Cell, que acabou virando uma dor de cabeça para desenvolvedores e só foi utilizado nesta plataforma.
Por isso, o novo console não chegou nem perto do sucesso inicial de seus predecessores, tanto pelos problemas acima quanto pela força de seus principais competidores, que traziam novidades ao mercado — o Xbox 360 com seu ambiente online mais robusto, e o Nintendo Wii com seus controles de movimento.
Um artigo do site Eurogamer em 2007 especula que parte destes tropeços finais da trajetória de Kutaragi foram, ao menos na divisão de eletrônicos, deliberados pelo próprio Nobuyuki Idei, colocando-o em uma posição extremamente difícil e que acabou não se encaixando com seu perfil, para impedir sua sucessão.
Se há verdade nisso ou não, a questão é que na hora de escolher um novo CEO para a empresa, a diretoria escolheu o executivo Howard Stringer, que vinha de uma carreira de sucesso pela divisão musical Sony BMG.
Com as portas aparentemente fechadas para o cargo, Kutaragi começou seu processo de saída da companhia.
A saída
Em 2007, Ken Kutaragi anunciou sua aposentadoria da Sony, deixando o cargo de diretor da Sony Computer Entertainment e assumindo a posição de Diretor Honorário. Em 2011, ele deixou a companhia completamente.
Mesmo antes disso, por volta do lançamento do PS3, ele já dizia que não estaria envolvido no desenvolvimento do PlayStation 4, de acordo com outro executivo da SCE, Shigeo Maruyama.
"Se ele achava que não conseguiria aguentar trabalhar no PlayStation 4 enquanto era promovido na companhia, ou se não tinha o conhecimento técnico necessário para lidar com o projeto, não sei porque não perguntei", disse à Polygon. "Mas ele disse claramente que não estaria envolvido no PS4 [mais de sete anos antes do seu lançamento]."
Com isso, o caminho de Kutaragi dentro da Sony havia chegado a seu fim, embora sua carreira não tenha chegado ao fim. Hoje, aos 69 anos, ele continua na ativa como presidente e CEO da companhia Cyber AI Entertainment.
Muito embora ele não tenha alcançado seu objetivo de liderar a Sony como corporação, seu legado continua firme e forte dentro da empresa: do contínuo sucesso da SCE - especialmente após a popularidade do PS4 -, até a sucessão de Kaz Hirai, que era um de seus principais subalternos nos anos 1990 e 2000, ao posto de CEO da empresa entre 2012 e 2018.
... O que não é nada mal para alguém que, como Makoto Iwai descreve, era tratado como um "peão" por Kutaragi, mesmo sendo responsável por seu principal mercado quando chefiava a Sony Computer Entertainment America.
Isso sem falar, é claro, dos diversos prêmios e reconhecimento pela indústria de games.
No fim, o Pai do PlayStation é uma figura tão brilhante quanto controversa, mas apesar de todos os seus erros e problemas de temperamento, Ken Kutaragi foi o engenheiro capaz de tornar a Sony em uma potência no mundo dos videogames, e sua importância e legado continuam a cada novo console da marca que chega ao mercado.