Escrever uma crítica de Wild Hearts sem mencionar Monster Hunter: World seria um exercício criativo interessante, mas também seria um enorme desrespeito com a inteligência do leitor.
Desenvolvido por veteranos no exercício de clonar a série de caçadas da Capcom, Wild Hearts evoca Monster Hunter: World em praticamente todos os seus elementos, da movimentação dos personagens aos detalhes visuais da interface de usuário. Ele não é o primeiro a tentar imitar tal receita de sucesso, mas é o que melhor o faz até hoje – e também o único que acrescenta ingredientes próprios que temperam sem estragar a mistura.
Se você ainda não jogou Monster Hunter, é pra lá que você deve ir. Já terminou World e Rise, e quer mais? Wild Hearts pode ser do que você precisa.
É um mundo familiar para fãs de Monster Hunter: um em que a humanidade, subjugada pela força descontrolada de enormes monstruosidades, é obrigada a se esconder e viver em medo. O jogador assume o papel de um caçador que, munido do misterioso poder tecnomágico Karakuri, é um dos poucos capazes de bater de frente contra criaturas como um javali do tamanho de um pequeno prédio e um rato de 3 metros, um pouquinho menor do que os que aparecem nas enchentes em São Paulo.
A ação em Wild Hearts é metódica, tal qual em sua inspiração. É preciso preparar os itens e alimentos apropriados para cada missão, encontrar a presa no mundo aberto e só então, após embates que não raramente duram mais de 20 minutos, finalizar uma caçada.
A fórmula é simples, e imediatamente compreendida por quem vê o tamanho dos Kemono: muito maiores e mais resistentes, eles não oferecem uma luta de igual pra igual. Enquanto duas ou três investidas de um Dorso-de-Lava acabam com a vida do jogador, este precisa ser paciente e preciso em seus ataques para lentamente acabar com a vitalidade de suas presas. Por conta deste ritmo, Wild Hearts não é um bom jogo para quem busca satisfação imediata – mas vencer um monstrão após meia hora de porrada é sempre muito recompensante.
Em seu favor, jogadores têm versões fantasiosas de armas que existem no mundo real – arcos, katanas, wagasas, e até um poderoso canhão de pólvora. São oito tipos distintos de armamentos no total, cada um com combos que prestigiam estilos de jogo muito distintos. A lâmina-garra, por exemplo, é ideal para jogadores agressivos que gostam de ficar colados na presa desferindo sequências de golpes rápidos, enquanto a nodachi é mais devagar e poderosa, privilegiando ataques decisivos.
A seleção de armas é um interessante microcosmo da relação que Wild Hearts tem com Monster Hunter, pois apesar de muitas delas terem equivalentes diretos nos jogos da Capcom, todas encontram uma maneira de se diferenciarem em funcionamento nos detalhes. A marreta, que é uma das armas mais fortes e lentas de Monster Hunter, em Wild Hearts ganha mais maleabilidade e alcance nas mãos de jogadores habilidosos, já que combos aplicados como precisão estendem temporariamente a manopla da arma, permitindo que ela acerte inimigos um pouco mais distantes.
Os dois fatores mais distintos de Wild Hearts em comparação a todos os outros que já tentaram trilhar o caminho dos jogos de ação de caçada têm relação com o conflito central traçado na narrativa do game.
Os Kemono, em suas formas demoníacas, representam a natureza corrompida por uma força maligna. Na medida em que a luta avança, eles começam a utilizar o ambiente ao seu redor para tentar atacar o jogador. Ainda que ataques como o surgimento de enormes raízes no solo ou de poças de magma sejam impressionantes visualmente, eles logo se revelam pouco interativos – não é nada muito diferente, por exemplo, de como o Kirin começa a invocar raios do céu em Monster Hunter quando está enfurecido.
Já o uso do Karakuri, sim, é diferente e marcante. Utilizando um tipo místico de cordas coletadas a partir do cenário e até mesmo dos corpos dos próprios monstros que você enfrenta, o jogador consegue invocar em tempo real pequenos aparelhos e construções que podem ajudar na travessia dos cenários e em momentos específicos do combate.
Nos controles, a mecânica é simples de executar, mas complexa de dominar – e até lembra um pouco Fortnite. A partir de uma roda de seleção, você pode construir rapidamente componentes básicos, como caixas, trampolins e ganchos. A partir daí, certos combos de componentes básicos podem ser empilhados para formar utilitários mais complexos. Três caixas, uma em cima da outra, formam uma torre que pode ser usada para alcançar lugares mais altos, ou então saltar para golpear um inimigo de cima. Já três pilhas dessas, lado a lado, formam um baluarte – uma poderosa muralha capaz de interromper uma investida inimiga e o deixar atordoado por alguns instantes.
Este é o elemento X de Wild Hearts. Com o Karakuri, o jogo expande as possibilidades do sistema de combate, permitindo que jogadores expressem a própria individualidade através das diferentes coisas que eles preferem construir. Em uma partida multiplayer, você pode assumir uma postura de suporte, invocando brumas curativas e escudos celestiais para manter seus aliados sãos e salvos, ou então suprimir a movimentação dos monstros com armadilhas e bestas de repetição. E todas essas possibilidades podem ser acessadas por um sistema de construção intuitivo, que raramente te deixa na mão mesmo no caos dos embates.
A mesma energia Karakuri também pode ser usada para construir instalações permanentes pelo mapa, como acampamentos, tirolesas que facilitam a travessia de terrenos falhados, e até mesmo torres de caça, que detectam e marcam no mapa potenciais presas.
Por mais que consiga acompanhar o ritmo de Monster Hunter em muitos de seus aspectos, Wild Hearts fica para trás na parte técnica. Os cenários escondem muitos glitches visuais que nunca chegam a atrapalhar o progresso, mas que causam estranheza. A performance, que é consistente no modo para um jogador, tropeça e oscila bastante no multiplayer – principalmente quando os quatro jogadores estão envolvidos em seus próprios projetos arquitetônicos simultâneos.
A comparativa falta de carisma dos Kemono em relação a monstros da Capcom como o Nargacuga e o Tigrex também acaba sendo um detrimento a longo prazo, já que Wild Hearts cobra que você enfrente as mesmas criaturas várias vezes para coletar as partes necessárias para fortalecer seus equipamentos. A natureza repetitiva da fórmula é bem mais sentida quando a sensação de novidade em torno dos novos Kemono se dissipa.
Para um primeiro esforço nesta nova marca, porém, Wild Hearts é um sucesso – e um enorme avanço em comparação com Toukiden, a mais recente tentativa da Omega Force de abocanhar parte do público de Monster Hunter. Com sorte, o plano de DLCs gratuitos tornará o jogo ainda mais atraente ao longo dos próximos meses, cumprindo o potencial deste primeiro concorrente à altura da Capcom antes mesmo de uma sequência ser anunciada.
- Lançamento
17.02.2023
- Publicadora
Electronic Arts
- Desenvolvedora
Omega Force