Ultros me levou por uma viagem que eu não esperava.
É difícil imaginar um jogo – qualquer jogo – que me faça pensar em Carrion no começo e em Undertale (e um pouquinho de Death Stranding) no final da campanha fazer com que isso tenha algum sentido, mas a equipe do estúdio Hadoque conseguiu.
Para isso, Ultros tem uma progressão metódica, apresentando elementos de narrativa e de gameplay passo a passo, ressignificando o sentido do jogo, e sua motivação como jogador, a cada novidade.
Tudo isso acaba tendo um preço, e é difícil não dizer que em vários momentos senti frustração e cansaço com a experiência, especialmente depois que o jogo revelar sua verdadeira natureza.
Mas isso não diminui a sensação de surpresa e deslumbre pela profundidade maior do que apresentada inicialmente, complementada por uma direção artística vívida, seja em suas partes mais belas ou grostescas.
Berço esplêndido
Ultros começa com sua personagem acordando no meio de uma clareira misteriosa.
Depois de explorar um pouco, e talvez interagir com a fauna local, ela encontra um corpo com uma espada cravada nele. Ao retirar a espada, o espírito do falecido entra em contato com você, explicando (mais ou menos) que este lugar é o Sarcófago, que se encontra preso em um loop temporal.
Para quebrar o ciclo, você deve destruir as cápsulas de sete xamãs espalhados pelo Sarcófago.
O problema é que, ao destruí-las, os xamãs morrem, iniciando o processo de nascimento de Ultros, um demônio espacial e horror cósmico de poderes inconcebíveis.
Isso sem falar na ameaça das outras pessoas presas no loop sem entender o que está acontecendo, e as estranhas criaturas que habitam o Sarcófago, que quase sempre te consideram uma figura hostil.
Como se espera de um metroidvania, o mapa do Sarcófago é interconectado, cheio de caminhos secretos que só podem ser acessados mais tarde e, vale destacar, absolutamente gigantesco.
Talvez gigantesco demais, considerando o verdadeiro objetivo do jogo. Mas falamos disso em breve.
Para te ajudar a atravessar este colosso espacial, você conta com a ajuda de um pequeno companheiro flutuante conhecido como Extrator, que ganha diferentes habilidades a cada xamã eliminado.
As habilidades variam desde o simples pulo duplo até o extremamente específico, incluindo um escavador, um cortador de plantas, e um leitor de fauna e flora.
Cada um destes upgrades trazem não só novas possibilidades de gameplay, mas uma noção melhor do que você realmente deve fazer no jogo, e qual é seu verdadeiro papel neste berço apocalíptico.
Você é o que você come
Ultros conta com um sistema de combate relativamente simples, focado principalmente em combos envolvendo saltos, chutes e golpes de espada.
Mas sua simplicidade inclui uma das árvores de habilidades mais estranhas que eu já vi.
Ao derrotar as criaturas, eles deixam um pedaço de carne para trás, que varia desde uma polpa de sangue até um corte "nobre" e preciso de cada bicho, dependendo da qualidade e variedade do combo usado para derrotá-lo.
E, para desbloquear novas habilidades e golpes diferentes, você precisa devorar cada parte destas carnes.
... Lembra quando eu comparei o jogo a Carrion? Pois é.
Cada carne tem pelo menos um de quatro atributos diferentes, representadas na forma de barras preenchidas a cada "refeição" que você faz, que são gastas a cada nova habilidade desbloqueada, sendo necessário comer mais para preenchê-las novamente.
Além disso, o jogo coloca um pézinho no roguelite, já que a cada reinício de ciclo todas as suas habilidades são resetadas – a não ser que você explore o mapa e encontre "micélios mnemônicos", que se prendem ao seu córtex e deixa o upgrade permanente.
Tudo isso te incentiva a jogar de forma extremamente agressiva, especialmente porque não é como se a maioria dos bichos te desse algum tipo de trégua ao entrar em um novo ambiente.
Mas isso é só para te condicionar a pensar que Ultros segue o padrão de um metroidvania típico, antes de apresentar uma camada extra que é fascinante, ambiciosa – e que pode alienar e frustar uma parte considerável do público.
Porque Ultros é, na verdade, um metroidvania de jardinagem.
Semeando a paz
Logo no início do jogo, você também é apresentado a Gardner, uma figura jovial que – como o próprio nome dele indica – cuida de um jardim em uma parte especial do Sarcófago.
Não só isso, ele também te ensina os pormenores de elementos do plantio e cultivo das diferentes plantas que podem ser encontradas na estação, e cada uma conta com suas diferentes características: algumas te ajudam a alcançar lugares mais altos; outras abrem caminhos bloqueados; outras te ajudam a correr; etc.
Muitas também dão frutos, que são outra forma de se alimentar além da carne de inimigos – e que acabam sendo importantes para outro elemento fundamental do jogo, que prefiro não entrar em detalhes.
As plantas também são essenciais para conectar a chamada "rede viva" que abre diferentes caminhos pelo Sarcófago, e que são importantes para trazer outra solução para o problema apresentado por Ultros (o demônio espacial).
E, ao contrário de você e os outros personagens, as plantas continuam crescendo e evoluindo a cada novo ciclo, dando ainda mais frutos e oportunidades para usá-las a seu favor.
É uma mecânica que vai ganhando cada vez mais complexidade e elementos modulares, especialmente com certas habilidades que você libera com o Extrator, e sendo bem sincero, há vários momentos em que ela parece que todo o conceito vai entrar em colapso.
Houve vários momentos em que senti uma gigantesca frustração e cansaço porque algo que experimentei ou recurso que usei para acelerar o crescimento da planta simplesmente não deu certo.
Em parte, sinto que isso seja resultado de um escopo ambicioso demais por parte do time, seja pelo tamanho do mapa, ou a variedade de sementes que você pode plantar, o que pode causar confusão.
Mas todas as ferramentas que os desenvolvedores colocam nas suas mãos é importante e tem seu valor, ainda que não pareça inicialmente. Mesmo agora, ainda há coisas que sinto que poderia usar de maneira melhor e mais efetiva para fechar as lacunas da rede viva pelo mapa.
Embora seja por vezes ambicioso demais, é um sistema tão único, e apresentado de forma tão efetiva, que consigo relevar suas falhas e tropeços.
Isso posto, minha dica para quem ainda não jogou é simplesmente relaxar e ser paciente: se algo não estiver funcionando, talvez você não tenha a habilidade ideal para o momento, e o melhor é esperar por um novo ciclo.
Beleza e loucura
Sei que falar da arte de Ultros tão tarde neste texto não seja o mais correto, mas é difícil descrevê-la melhor do que qualquer imagem ou vídeo do jogo em si não consiga por conta própria.
O visual é psicodélico; é estranho; é grotesco; é perturbador; é genuinamente belo.
A direção artística e criativa ficaram por conta de Niklas "El Huervo" Åkerblad, que ficou conhecido no mundo dos games por suas artes em Hotline Miami.
Aqui, a paleta de cores radioativa é ainda mais potente, ao trazer um universo completamente alienígena tanto na flora quanto aos diferentes tipos de animais e pessoas que encontramos pelo caminho.
Há uma clara inspiração no estilo do lendário (e saudoso) Mobius, tanto que ele é citado nos agradecimentos especiais durante os créditos, e fica bem claro o quanto o trabalho dele pautou a estética vista aqui.
A música complementa a arte de forma maravilhosa, dando a cada lugar do Sarcófago uma personalidade própria, da contemplatividade e paz interior do jardim de Gardner até o ar ameaçador no centro da estação, onde Ultros aguarda o momento para despertar.
Plantando o que colhe
É certamente possível engajar com Ultros como um metroidvania tradicional e ignorar todos os seus outros sistemas de jogo, mas é francamente se roubar da sua experiência e verdadeira essência.
O que o jogo se propõe a fazer foi tão diferente e tão bem construído que, mesmo com seus tropeços, ainda continuo impactado.
E sim, pode acabar sendo um processo frustrante e em que as coisas não acabam indo como você espera.
Mas bom, o mesmo pode ser dito da jardinagem.
Ultros foi uma das maiores surpresas que tive em um jogo nos últimos tempos. Eu esperava um metroidvania com arte estranha e psicodélica, e ele definitivamente é isso. Mas mais do que isso, a forma com que ele vai se desabrochando e revelando sua verdadeira natureza é tão bem-feita que, apesar de tropeços, não devo parar de pensar nela por muito tempo.
Ultros está disponível para PC, PS4 e PS5.
Hey, listen! Venha se inscrever no canal do The Enemy no YouTube. Siga também na Twitch, Twitter, Facebook e TikTok ou converse com o pessoal da redação no Discord.
- Lançamento
13.02.2024
- Publicadora
Kepler Interactive
- Desenvolvedora
Hadoque