Se fizéssemos uma lista de desenvolvedoras que precisam recuperar sua credibilidade, a BioWare provavelmente estaria no topo. Famosa por RPGs densos e por consagrar franquias como Dragon Age e Mass Effect, a empresa errou duas vezes consecutivas com Andromeda e Anthem, ambos esquecíveis.
O design futurista e belos gráficos não foram suficientes para sustentar o último lançamento do estúdio, que viu a tal da “BioWare Magic” se esgotar em meio a acusações de ambiente de trabalho tóxico. Os melhores títulos da empresa surgiram do caos, mas normalizar um processo entrópico de desenvolvimento foi um tiro pela culatra; não à toa, Dragon Age: The Veilguard é um game que joga seguro, sem tomar grandes riscos, mas ainda convence bastante.
Não é como se o próprio Veilguard tivesse passado por um processo de lançamento tranquilo. Mudança de título, uma divulgação que parecia ter medo de mostrar a que o jogo veio e, claro, uma torrente de críticas dos fãs, que identificaram várias simplificações na identidade de franquia, são alguns dos obstáculos a serem superados pelo game que foi anunciado como Dreadwolf.
A apresentação a portas fechadas no Summer Game Fest não foi exatamente animadora, e impressionou mais pelo ótimo criador de personagens do que qualquer outra coisa. Tudo apontava para que Veilguard fosse um jogo morno.
Mas e se o arroz com feijão da BioWare já fosse muito mais que o suficiente? O novo Dragon Age surpreende bastante com uma narrativa envolvente, tanto na campanha, quanto no universo que a cerca. O mundo, inclusive, é dividido em vários grandes mapas separados, ao invés de um único mundo aberto.
Você é Rook, personagem que foi recrutado por Varric para acabar com os planos de Solas. O deus élfico quer derrubar o véu que contém o mundo dos monstros, e cabe à sua equipe impedir a catástrofe que mataria milhares de inocentes.
A premissa que já aparece nos trailers é bem suficiente para saber o que está rolando em Thedas no início do jogo, e falar mais do que isso já seria o bastante para afetar a experiência do jogador. Afinal, é nítido que há várias formas de contar a história de Rook e sua trupe.
Desde as primeiras cenas, o Role Playing dentro da sigla RPG se mostra bem presente. A classe e a facção de origem escolhidas para o personagem mudam diálogos já nos minutos iniciais do game, e isso é levado até o fim da campanha.
Além de Varric, também somos apresentados (ou representados) a Lace Harding — que, assim como o líder do esquadrão e o próprio vilão da história, já apareceram em Inquisition — e Neve Gallus, suas duas primeiras parceiras de party.
Aqui começam as críticas que mais foram feitas ao game, desde que seu gameplay foi revelado. O jogador só pode controlar Rook, e o único comando sobre os companions é pedindo que eles usem suas habilidades, que ficam disponíveis tanto por uma roda de skills, que pausa o combate à la Final Fantasy VII Remake, ou por atalhos no controle.
A decepção para os fãs é baseada em outros jogos da série, que já permitiam controlar seus companheiros de party. Comparando-se a Final Fantasy VII Rebirth, outro grande RPG de ação deste ano, o game acaba ficando atrás nesse sentido, já que é possível lutar com controle total dos amigos de Cloud.
Essa falta de variedade seria justificável se o combate com Rook fosse incrível. Na classe de mago, escolhida para a minha campanha, ele atinge essa meta ao menos no quesito visual. The Veilguard é um jogo muito bonito em todas as instâncias; o estilo “quase realista” é mais uma aposta segura da BioWare, que não precisa entregar tanto fotorrealismo ao mesmo tempo que consegue brincar com o design de personagens e cenários.
Mas apertando os botões, há momentos de altos e baixos. O “jokenpô” mágico é a grande chave para as batalhas do game, e estar armado com os elementos aos quais seus inimigos são vulneráveis facilita muito sua vida. O problema é que a progressão de itens e habilidades é lenta. Não é como se cajados e orbes fortíssimos de todos os elementos fossem fáceis de achar: os baús espalhados pelo mapa nem sempre fornecem algo útil, e as lojas só te entregam bons itens quando se fortalece o laço com as facções de Thedas.
Isso culmina em lutas que se arrastam. É totalmente normal encontrar um cajado de fogo que vai ficar com você por praticamente um terço do jogo, simplesmente pela falta de opções melhores nos outros elementos. Contra inimigos vulneráveis a esse tipo de magia, o combate é delicioso, especialmente pela variação entre cajado e o combo de orbe e adaga, que misturam agilidade e cadência, mas outros confrontos se tornam apenas cansativos.
Há alguns fatores que amenizam essa questão. Se jogado com calma, Veilguard oferece muitos caminhos para fortalecer seus companions e garantir que o jogador tenha um leque vasto a seu dispor. O próprio Rook consegue carregar duas armas e três habilidades diferentes, sem falar em sua Ultimate, então existe espaço para se ter repertório, ainda que a regeneração de mana seja lenta, e alguns tempos de recarga sejam altos.
Por outro lado, a árvore de habilidades acaba te direcionando para especializações — no meu caso, magias de eletricidade. E o que acontece quando os itens mais fortes que você encontra no caminho também são elétricos? Você se torna unidimensional, e inimigos resistentes ao choque vão te dar muito mais trabalho.
Claro, é possível reiniciar a skill tree a qualquer momento e escolher outro foco, caso o jogador queira otimizar o combate ao máximo, mas há quem vai preferir pelo conforto de um estilo de jogo que o agrade, e sair dessa zona pode não valer tanto a pena assim. No fim das contas, uma oferta um pouco maior de armamentos já resolveria bastante o problema.
Dito tudo isso, encaixar alguns combos e encontrar os companions que complementam seu estilo de jogo é incrível. No meu caso, a elfa Bellara era o setup perfeito para meus ataques, usando uma espécie de fenda gravitacional que puxava vários inimigos simultaneamente — uma magia que… também era elétrica.
No fim, o jogador terá de caminhar na linha tênue que existe entre conforto e otimização para se encontrar no combate. Para quem prefere os style points, algumas lutas com certeza vão demorar mais do que deveriam, mas ter estilo próprio importa muito em um game que valoriza tanto a construção dos personagens.
Rook é incrivelmente coerente com a personalidade que vai sendo criada ao longo da campanha. Foram pouquíssimas ocasiões em que uma escolha de diálogo causou uma resposta muito diferente da que eu esperava, e quando a poeira baixou, a sensação era de que essa aventura foi vivida por minha versão élfica — definitivamente algo que todo RPG com alguma profundidade quer atingir.
Tudo ao redor colabora com essa impressão, especialmente a presença dos sete companions. Em um primeiro momento, sentia uma relação mais próxima com aqueles que são introduzidos logo de cara: Neve, Harding e Bellara entram para o grupo bem cedo, seguidas de Lucanis.
O quarteto inicial acabava sendo minha preferência na hora de interagir e de selecionar os dois companheiros que me acompanhariam em cada missão, muito porque a introdução de Taash, Emmrich e Davrin acontece de forma menos orgânica, mas aos poucos o espaço para cada um foi sendo conquistado no meu coração — ou no de Rook.
A história de cada um dos sete é engajante, e é contada majoritariamente por meio de sidequests e interações não obrigatórias. Parece fútil aceitar missões que são simplesmente o almoço com a mãe de um dos companions, especialmente quando o mundo está prestes a acabar, mas é assim que Veilguard prende o jogador.
A amizade entre os oito membros da party carrega esse jogo nas costas. Se a BioWare apostou seguro em um RPG de ação mais simples, sem grande profundidade no combate, o oposto foi feito na construção dos personagens, algo que já é assinatura do estúdio nesse ponto.
Opções românticas, histórias trágicas e de descoberta pessoal são a tônica do game. A ausência de qualquer medo ao lidar com pautas contemporâneas, como identidade de gênero, só dá mais força a isso — e também vai dar bastante gasolina para os esquisitos da internet, que definitivamente vão ficar chocados ao verem transsexualidade ser abordada em um jogo que tem uma mulher trans como diretora.
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The Veilguard é honesto com o jogador em todos os momentos. Seja nas escolhas, caminhos românticos e abordagem de temas delicados. O problema é que, às vezes, a verdade pode ser dura demais, e o jogador não vai fugir das consequências de suas ações. Decisões cada vez mais difíceis vão se apresentando, e dependendo do caminho escolhido, o resultado de algumas é tão óbvio quanto doloroso.
Sem muito alarde, Dragon Age: The Veilguard é mais um grande RPG de 2024. Depois de anos sombrios, a BioWare parece ter se reerguido com um título mais seguro, um RPG de ação competente, que não exala complexidade em seu combate e nem tenta impressionar com um vasto mundo aberto, mas que ainda pode pavimentar a estrada para recuperar seu lugar no panteão do Role Playing.
- Lançamento
31.10.2024
- Publicadora
EA
- Desenvolvedora
BioWare