
Reprodução/Internet Archive
Caper in the Castro: conheça o primeiro jogo com temática LGBTQI+ da história
Lançado em 1989, jogo trazia personagens LGBTQI+ e visava arrecadar fundos para combater a AIDS
The Last of Us, The Outer Worlds, Gone Home, Life Is Strange: de pequenos jogos independentes a superproduções, não há dúvidas que personagens e temáticas LGBTQI+ têm conquistado cada vez mais espaço dentro da indústria de games nos últimos anos.
Mas ainda que a questão da diversidade venha ganhando força e visibilidade nesta geração, a tradição da representatividade LGBTQI+ é bem mais antiga do que muitos imaginam.
Ao longo das últimas décadas, dezenas de personagens LGBTQI+ povoaram games nas mais diversas plataformas e gêneros de jogo – ainda que tenham demorado para chegar às posições de destaque que têm hoje.
Entre todos estes títulos, poucos são tão icônicos quanto Caper in the Castro, amplamente considerado o primeiro jogo de temática explicitamente LGBTQI+ da história, e um marco da representatividade por motivos que vão além de seu pioneirismo.
Lançado em 1989, Caper in the Castro é um jogo de aventura e mistério ao estilo point and click que acompanha a história de Tracker McDyke, uma detetive particular lésbica que explora as ruas do Castro, bairro gay histórico de São Francisco, em busca de uma amiga sequestrada, a drag queen Tessy LaFemme.

O game é a primeira e única experiência de CM Ralph, designer e artista dos Estados Unidos, no desenvolvimento de jogos, e foi resultado de um desejo constante de experimentar com novas expressões artísticas e das vivências que teve ao se mudar do sul da Califórnia para São Francisco no final da década de oitenta.
"Eu nunca me propus a fazer história”, afirmou CM Ralph em entrevista ao The Enemy. “Realmente não tinha ideia do que tinha feito até décadas mais tarde, quando fui procurade* [veja nota de rodapé] por um repórter".
A mudança para São Francisco tocaria CM Ralph de diferentes formas: por um lado, a surpresa positiva com liberdade e acolhimento que a comunidade LBGTQI+ desfrutava na cidade; por outro, o impacto devastador que a epidemia de AIDS teria naquela comunidade nos anos oitenta.
Caper in the Castro surgiu a partir dessa mistura, combinando a vontade de CM Ralph em produzir um “trabalho de amor” para a comunidade LBGTQI+ da cidade de São Francisco, mas também como forma de dar visibilidade ao problema da AIDS, oferecendo uma alternativa para atrair fundos para iniciativas que combatiam o avanço da doença.
Com a ideia formatava, CM Ralph precisava de uma ferramenta para desenvolver o game – o que também acabou sendo uma história bem pouco usual. Sua “natureza perversa” de pegar ferramentas existentes e usá-las para algo que elas não foram planejadas, levou ile a escolher o HyperCard, uma plataforma corporativa para o Macintosh que combinava a capacidade de criar bancos de dados com uma interface gráfica customizável.
A ferramenta estava longe do ideal para games, mas funcionou: combinando imagens em preto e branco, sons e caixas de texto, CM Ralph criou um jogo de aventura e mistério que trazia diversos quebra-cabeças para o jogador enquanto guiava a protagonista Tracker McDyke em sua investigação.
A intenção do jogo também ficava clara logo em sua introdução: "Eu criei este jogo como um trabalho de amor pela comunidade de gays e lésbicas", escrevia e designer em uma mensagem logo na abertura de Caper in the Castro. "Se você gostou de jogá-lo, peço que faça uma doação para a instituição de caridade relacionada à AIDS de sua escolha, por qualquer valor que você sinta que é apropriado. Eu chamo isso de CharityWare".

"Olhando para trás, fico feliz que o jogo tenha se tornado uma pequena parte da história LGBTQI+, mas ainda mais feliz por ter ajudado a arrecadar dinheiro para instituições de caridade contra a AIDS em um momento em que nossa comunidade precisava desesperadamente disso", contou.
Depois de produzido, Caper in the Castro seria distribuído gratuitamente através de redes LGBTQI+ nos chamados Bulletin Board Systems (BBS), sistemas que permitiam a conexão entre computadores através do telefone. Eram grupos pequenos, mas próximos, e que ajudaram o jogo a ganhar tração depois do lançamento.
Ainda assim, estigmas da época associados à produções de temáticas LGBTQI+ levaram o game a ter um alcance limitado, e levaram seu criadore a desenvolver uma versão “hétero” da obra, substituindo nomes de locações e de personagens para criar um novo título que apelasse a um público maior. Surgia aí Murder on Main Street, um jogo que era essencialmente igual Caper in the Castro, mas sem menções às temáticas LGBTQI+.
"Minha decisão de fazer uma versão 'hétero' do jogo foi puramente um ato humorístico e perverso", explicou CM Ralph ao The Enemy. "Eu pensei que seria histericamente engraçado que todas aquelas pessoas heterossexuais, muitas das quais eu supunha serem anti-LGBTQ estariam jogando e gostando de um jogo LGBTQ sem saber. Eu tenho um senso de humor bizarramente perverso às vezes".
Murder on Main Street seria publicado e vendido pela Haizer Software pelos anos seguintes e garantiria uma receita extra para CM Ralph. Ainda assim, depois do desaparecimento de sua cópia original em disquete, o título ficaria sumido por anos.
Seu resgate só aconteceu em 2017, quando CM Ralph redescobriu a mídia original de Caper in the Castro e a enviaria para Andrew Borman, curador de jogos digitais no Museum of Play, de Rochester, em Nova Iorque. Com as cópias, Borman colocou a obra em um emulador de Macintosh, que está agora disponível através do Internet Archive e pode ser jogada gratuitamente.

O resgate do jogo levou a uma nova onda de interesse por Caper in the Castro, que acabou se tornando um dos jogos principais da Rainbow Arcade, uma exibição do ano passado sobre games com temática LGBTQI+ do Schwules Museum de Berlim, na Alemanha, instituição de referência na documentação da cultura LGBTQI+.
O sucesso e importância de Caper in the Castro, no entanto, nunca levou CM Ralph a trabalhar em outros projetos de videogame – segundo ile, por ser uma pessoa que sempre busca diferentes expressões artísticas multimídia. Ao longo das últimas três décadas, CM Ralph trabalhou com curta metragens, arte em vidro e até um projeto recente para a criação de marcadores de livro com ilustrações animais em extinção – iniciativa da qual mais se orgulha atualmente.
Quanto aos games? Bem, sua visão do atual estado da indústria não é particularmente positivo.
"Acho que os jogos de videogame se tornaram mais uma indústria corporativa do que uma forma de arte única. É tudo sobre dinheiro e os resultados financeiros. Por exemplo, a Activision Blizzard que demitiu quase 800 pessoas no ano passado. As empresas que criam jogos empregam centenas e milhares de artistas digitais, programadores, modeladores 3D e criadores de conteúdo. Todos eles devem aderir à 'visão e padrões corporativos' estabelecidos para cada projeto. Então não. Eu não acho isso muito artístico", avalia. "Os criadores de jogos independentes, por outro lado, são mais autores do que meros artistas. Atualmente, se existe alguma arte na criação de jogos, é aí onde você a encontra".
*CM Ralph pediu pelo uso dos pronomes de língua inglesa "they", "them" e "their" ao longo do texto. Optamos por utilizar "ile" e palavras terminadas em "e" como alternativas à falta de pronomes não-binários no português. A escolha foi autorizada por CM Ralph antes da publicação do texto.