Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que há 70 milhões de pessoas com autismo em todo o mundo, sendo 2 milhões somente no Brasil. Além disso, estima-se que uma em cada 88 crianças apresenta traços de autismo, com prevalência cinco vezes maior em meninos.
No Brasil, ainda existe um tabu muito grande ao redor de pessoas com esse espectro. Pouca é a inclusão que encontramos para elas.
Com a proposta de mostrar a dificuldade e a necessidade de inclusão de pessoas autistas na sociedade, alunos do curso de Engenharia e Jogos Digitais da Universidade Veiga de Almeida (UVA) desenvolveram games virtuais para crianças e adolescentes que trabalham os diferentes níveis de autismo e ajudam a desconstruir estereótipos com atividades simples.
Os games mostram como auxiliar uma pessoa com autismo no cotidiano e qual a melhor forma de agir em determinadas ocasiões por meio de cores vibrantes, dinâmicas simples e problemas do dia a dia.
“Os jogos podem ajudar a melhorar o comportamento quando eles encaram uma entrevista de emprego e estão dentro de uma escola, por exemplo, para que se sintam valorizados e úteis na sociedade”, destaca Thiago Gabriel, professor de Jogos Digitais e mediador do Laboratório de Robótica da UVA.
A Grande Aventura de Ronaldo
Desenvolvido pelo estudante Yan Gabriel Telles, o jogo mostra, em três fases, as dificuldades e a visão de mundo das pessoas autistas. Cada nível representa um medo: toque, barulho e autoridade. Ao vencer os desafios, o jogador cria mecanismos para permanecer calmo em situações de perigo. Se o usuário não consegue derrotar um dos problemas, o game recomeça para que ele tenha mais chances de vencer.
O jogo não tem um "game over" para estimular os jogadores, e a energia é recuperada por meio de um balde d’água. Telles usou a plataforma RPG Maker para criar o jogo e pediu para amigos autistas testarem. Os jogadores com autismo de nível leve podem jogar sozinhos, e os com níveis mais altos podem precisar de um adulto para auxiliá-los.
Para Yan Gabriel Telles, os jogos são a mídia de maior visibilidade possível. “Música, por exemplo, é mídia apenas sonora. Já os filmes contemplam as dimensões sonora e visual. Por outro lado, os jogos são mais expressivos porque podem ser controlados. A pessoa controla o rumo da narrativa, envolvendo a visão, a audição e o tato. Ter esse tipo de experiência para pessoas autistas é de suma importância”, comenta ele.
Ele também comenta que queria criar uma experiência para desmistificar o autismo. Que seu objetivo era mostrar que eles são iguais a todo mundo, apenas com suas próprias diferenças.
“Mas quem não tem, não é? O jogo, inclusive, não é sobre um garoto autista. É sobre um garoto - que, no caso, é autista - superando suas dificuldades. No fim das contas, eles só querem ser aceitos como uma pessoa normal”, reforça Yan.
Além disso, para Yan, a dificuldade durante a criação do jogo foi a pesquisa para tentar compreender melhor como são os problemas e dificuldades dos autistas. Para isso, ele conta que entrevistou diversas pessoas com o espectro, inclusive amigos, para conseguir criar algo que fizesse sentido e não fosse simplesmente uma pessoa sem conhecimento falando. Também conta que a parte dos testes foram desafiadores, porque queria tentar não só em casos de autismo leve, mas também em graus mais severos.
Guardião Enri
Desenvolvido pelos alunos Daniel Porto, Bernardo Barcelos e Juliana Gomes, Guardião Enri aborda a dificuldade de crianças autistas em fazer amizade e os preconceitos enfrentados na escola.
Eles desenvolveram quatro fases para conscientizar sobre bullying e mostrar a importância de conversar com os professores. Nas duas últimas fases, o usuário sempre perde o jogo e aparece uma mensagem falando que só é possível passar de etapa se pedir ajuda de um responsável. Ele é voltado para crianças de cinco a sete anos e está disponível para PC.
O jogo é todo baseado em labirintos, do início ao fim, e tem as cores inspiradas em jogos infantis.
Uma das inspirações para a criação do jogo veio do amigo autista que Juliana Gomes teve no ensino fundamental. “Eu via o quão difícil era pra ele se relacionar com os demais e como os colegas não estavam preparados para essa interação. Achei que seria interessante trazer essa realidade para o jogo”, comenta ela.
Além disso, ela também acredita que é muito importante que haja esse tipo de jogo: educativos, que não só divirtam, mas também ensinem e conscientizem. É preciso mostrar que crianças com autismo são iguais às outras e que é errado praticar bullying.
“Isso é importante para uma criança de 4-5 anos que está jogando, a princípio, para se divertir. Ela acaba absorvendo esses ensinamentos durante seu desenvolvimento. Essa é a melhor forma para aprender a respeitar o outro”, ressalta Juliana.
O maior desafio para jogos desse nicho é o baixo consumo. É muito difícil ver jogos educativos e inclusivos sendo consumidos como os games mais difundidos. Existe uma dificuldade em distribuir esse tipo de jogo para o mercado, que passa também pela falta de investimento nos desenvolvedores menores.
Memory Game
Desenvolvido pelos alunos Lucas Moura Silva, Pedro Vinícius e Kai Paiva, ele estimula a memória dos jogadores por meio de 18 cartas coloridas com imagens. Os usuários têm poucos segundos para ver as combinações dos elementos e depois selecionar os pares corretos.
Ele foi desenvolvido para causar sentimentos positivos nos autistas por meio das cores e da diversão.
Lucas Moura Silva fala que o jogo foi inspirado por jogos da memória comum, mas que tem uma peculiaridade: ele foi todo pensado com um esquema de cores para pessoas com autismo.
“As cores para os autistas têm grande importância. Elas são capazes de despertar determinados sentimentos. A maior parte do jogo - as cartas viradas, o painel - foi feita na cor azul, que estimula um sentimento de calma, bem-estar e equilíbrio para pessoas autistas. Já o amarelo, também usado, traz um estímulo social”, comenta Lucas.
Para ele, a dificuldade de criar jogos inclusivos é maior porque não é apenas desenvolver um jogo. “Vai muito além da criação da história, da parte gráfica, da preocupação com os personagens”, comenta. “É preciso entender como as pessoas autistas são de verdade”.
O Pequeno Mundo de Rai
Desenvolvido pelos alunos Arthur Dias, Carlos Magno e Felipe Cipriano, o game é baseado em um sonho do personagem principal que precisa passar por diferentes mundos para resgatar a namorada.
A proposta do jogo é mostrar como os autistas podem exercer diversas atividades e que não são limitados. Para passar de fase, basta andar pelo ambiente, coletar algumas moedas e entrar nos portais.
Com fases ambientadas na obra Uma Noite Estrelada de Van Gogh, as cores vibrantes despertam sentimentos nos jogadores autistas.
A inspiração para a criação de O Pequeno Mundo de Rai vem da experiência de Arthur Dias com o filme Rain Man e a atuação de Dustin Hoffman como o personagem autista Raimond. “Lembro que, aos 13 anos, assisti esse filme com meu pai e me emocionei. O nome do protagonista se chama Rai justamente por causa do personagem do filme”, comenta Arthur.
Para Arthur, jogos são uma arte que podem comunicar sentimentos, mensagens e representatividade. Eles carregam sentimentos e representatividade para um autista, independentemente da idade. É como uma forma de acolhimento para as pessoas autistas.