Videogames e violência. Por mais banal que a frase a seguir possa parecer, os jogos eletrônicos quase sempre são acusados de incitar comportamentos violentos em jovens e/ou são relacionados a crimes cometidos pelos mesmos.
O modus operandi desse tipo de polêmica quase sempre é o mesmo: uma tragédia acontece e os programas de notícias da mídia televisiva geralmente apontam a culpa para os videogames, afirmando que foram os games que influenciaram os jovens a cometer o crime da vez.
Quando discussões do gênero acontecem, parece que o mundo está, subitamente, de volta ao início dos anos 2000. Porém, o ano é 2019 e essa controvérsia ainda ronda a televisão, a internet, as revistas e diversos outros tipos de meio de comunicação.
Para tentar entender por que isso ainda acontece e quais fatores podem verdadeiramente influenciar jovens a cometer crimes hediondos, como o mais recente caso da escola em Suzano, São Paulo; e o que leva a mídia e culpabilizar veemente os videogames, conversamos com Beatriz Blanco.
A pesquisadora de 31 anos reside em São Paulo e seus estudos possuem enfoque em videogames, o contribuiu para que ela tivesse um eBook co-publicado na Amazon sob o título "Videogames, Diversidade e Gênero: Pesquisa Científica e Acadêmica".
The Enemy: Por que você acha que a mídia brasileira insiste em acusar os videogames quando alguma tragédia envolvendo jovens e crianças, acontece?
Beatriz Blanco: Eu acho que a tendência em procurar culpados nesses momentos de tragédia existe porque a situação é tão horrível e absurda que parece que precisamos acreditar que ela só pode ter sido causada por um elemento externo e poderoso. Hoje são os games, mas já foram os quadrinhos, a televisão, etc. Em relação aos videogames especificamente, o consumo deles ainda é bem atrelado a crianças e adolescentes no senso comum (embora quando analisamos estudos demográficos sobre jogos essa visão não se sustenta, já que o gamer médio tem mais ou menos 30 anos) e o "mundo dos jovens" é sempre colocado como exótico e até meio bizarro, fora da compreensão dos adultos e cheio de perigos. Aí acaba sendo uma saída mais confortável considerar games violentos culpados sem levar em conta o isolamento social e sofrimento psicológico que muitas vezes essa mesma cultura acaba impondo sobre os jovens.
Em suas pesquisas, essa tendência de culpabilidade em cima dos videogames é comumente reproduzido pela mídia fora do Brasil também?
Beatriz: É bem comum, na verdade os primeiros movimentos nesse sentido foram fora do Brasil. Tivemos uma comoção em 1976 com o jogo Death Race, que tinha como objetivo atropelar pedestres. Depois em 1993 houve uma movimentação nos EUA por causa de jogos como Mortal Kombat e Night Trap, associado ao pânico moral criado pela mídia e por uma postura pró regulamentação das armas de Bill Clinton, que acabou levando lobistas pró armas a procurarem outros culpados para a violência. Em 1999 tivemos a associação entre games e Columbine. Minha pesquisa acaba ficando mais entre EUA e Brasil, mas definitivamente nós não inventamos essa tendência.
Quando os videogames são culpados por essas tragédias, passa a impressão de que eles agravam o quadro de isolamento social e o sofrimento psicológico que você mencionou, mas existem estudos que na verdade provam o contrário, certo?
Beatriz: É bem complicado de afirmar de forma generalista se o videogame agrava ou não o isolamento porque depende de uma série de variáveis (embora sim, existem estudos nessa linha). Eu acho que nós precisamos analisar como o videogame se insere e se articula em cada contexto. Ele pode ser um elemento importante de sociabilidade em determinados grupos e também reunir uma comunidade extremamente tóxica e violenta em torno de si. A pergunta que deveríamos fazer, na minha opinião é: em que contextos sociais o videogame se insere hoje? Quando em um contexto negativo, com que outros fatores ele se relaciona? Dá para fazer um comparativo superficial com torcidas de futebol, por exemplo: você vai encontrar experiências muito positivas e muito negativas nesse cenário. Não faz sentido generaliza-las.
Você citou masculinidade tóxica em um tweet sobre o assunto. Em sua pesquisa, quais outros fatores desse gênero acabam influenciando esse comportamento em jovens a cometer crimes? Poderia explicar melhor o que quis dizer quando comentou sobre "a posição dos videogames em uma cultura de glorificação da violência"?
Beatriz: Sobre masculinidade tóxica, eu não pesquiso a questão criminal especificamente então não me arriscaria a afirmar sobre quais fatores realmente influenciam a ocorrência de crimes. Porém, na minha pesquisa a extrema competividade associada a uma chamada cultura gamer, e a necessidade de se provar habilidoso o tempo todo, que também tem conexões com o que chamamos de masculinidade tóxica, gera uma ansiedade pesada entre os membros, que precisam performar essa habilidade e superioridade continuamente, ao mesmo tempo que demonstram desprezo pelos "de fora". Esse tipo de ambiente pode contribuir para o isolamento e o comportamento violento. Nós vemos algumas manifestações disso em casos de ciberbullying no meio gamer. Mas mais uma vez: é preciso cautela na hora de generalizar. Existe uma cultura digital bastante complexa hoje que precisa ser considerada na hora de fazer uma análise das relações entre games e violência.
A cultura então sempre foi vítima, a culpabilidade é comum quando acontece uma tragédia. Por que você acha que recorrentemente os videogames ocupam os holofotes dessas acusações, quando os tipos de mídias que reproduzem violência são diversas?
Beatriz: Acho que os games são uma mídia mais recente, e que o consumo de games mainstream ainda é focado em um nicho. Então é a tendência a culpar uma mídia que você não consome. Eu acho que com o envelhecimento e a ampliação do público de games essa tendência tende a desaparecer ou perder alcance.