É muito difícil falar em "impactos positivos" de uma pandemia que já fez mais de 1,7 milhão de vítimas ao redor do mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas é inegável também que algumas políticas adotadas para o combate da Covid-19 tenham beneficiado setores específicos da economia ao longo do ano. A indústria dos videogames é um desses exemplos.
Isoladas dentro de casa e fisicamente distantes de amigos e familiares, mais e mais pessoas se voltaram para os jogos eletrônicos como alternativa de entretenimento durante a quarentena, o que promoveu um crescimento significativo do setor.
Dados recentes da consultoria IDC sobre o mercado norte-americano, por exemplo, revelam que o setor deve crescer 20% neste ano, chegando aos US$ 179,7 bilhões – cerca de R$ 940 bilhões em conversão direta. Na prática, isso faz da indústria de games um setor maior do que a soma do valor das indústrias de filmes e esportes da América do Norte. A expectativa é que o crescimento continue em 2021.
Além do crescimento inesperado por conta do tempo extra que pessoas passaram dentro de casa ao longo de 2020, o ano também já era previsto como importante para a indústria por outros motivos. Em novembro, Sony e Microsoft lançaram oficialmente os consoles de nova geração PlayStation 5 e Xbox Series X / Xbox Series S em dezenas de países, renovando o interesse de consumidores em hardwares voltados para jogos.
Nem todas as notícias foram boas, é claro. Ainda que o interesse em jogos eletrônicos tenha sido muito maior do que em anos anteriores, estúdios, publishers e desenvolvedores de todo o mundo tiveram seus planos virados de cabeça para baixo ao longo de 2020. De jogos adiados à nova realidade da produção de games com equipes em home office, várias adaptações foram necessárias. E algumas delas prometem continuar impactando a indústria nos próximos anos.
Adeus eventos físicos, olá eventos virtuais
Em 11 de maio de 1995, a indústria de games se reuniu pela primeira vez no Centro de Convenções de Los Angeles, na Califórnia, para realizar a edição inaugural da Electronic Entertainment Expo, a E3. Nos anos seguintes, o evento se consolidaria como o principal palco de anúncios da indústria, e ponto de encontro para publishers, estúdios, desenvolvedores, lojistas e – mais recentemente – consumidores.
Pela primeira vez em 25 anos, a E3 não aconteceu. Em março de 2020, a Electronic Software Association (ESA), responsável pela organização da E3, confirmou que a feira seria cancelada neste ano para garantir a saúde e segurança de fãs, funcionários e exibidores por conta da pandemia da Covid-19.
A E3 2020, é claro, não foi o único evento físico a ser cancelado ao longo do ano: Game Developers Conference (GDC), Tokyo Game Show (TGS), Brasil Game Show (BGS), Gamescom e tantas outras tradicionais conferências da indústria de jogos eletrônicos acabaram adiadas ou sequer foram realizadas, ou adotaram formato não presencial.
Para ocupar o vácuo deixado pelas grandes convenções físicas, eventos virtuais se tornaram o “novo normal” para a indústria. Assim como músicos e bandas abraçaram lives para conectar com fãs em shows virtuais ao longo de 2020, publishers, desenvolvedoras e organizações do setor foram ao YouTube e Twitch para apresentar suas novidades em transmissões ao vivo ou gravadas.
A mudança foi meio brusca, é verdade, e nem todos foram bem-sucedidos no processo de adaptação. A própria E3 é exemplo disso: a ESA chegou a cogitar uma edição online do evento neste ano, mas a ideia não foi para frente. No embalo dos eventos virtuais, a Microsoft também prometeu que anunciaria novidades mensalmente ao longo de todo o ano através da iniciativa Xbox 20/20. O plano não durou dois meses, ainda que alguns eventos pontuais tenham sido realizados pela companhia.
Outras empresas tiveram mais sucesso na transição. Com o já tradicional formato Direct, a Nintendo surfou na tendência com tranquilidade com Indie Showcases, Partner Showcases e outros eventos virtuais próprios durante o ano. Lançado no ano passado, o programa State of Play, da Sony, emula a estratégia da Nintendo e também foi palco dos principais anúncios da empresa ao longo do ano – incluindo, é claro, o próprio PlayStation 5.
Publishers de grande escala também apostaram em iniciativas similares próprias: a Ubisoft criou o Ubisoft Foward; a Electronic Arts fez o EA Play Live; e a Blizzard aposta em uma versão digital da BlizzCon que acontecerá em fevereiro de 2021.
Além dos eventos virtuais “first-party”, vale destacar também iniciativas de organizações independentes que buscaram agregar anúncios de múltiplos estúdios em um só lugar, como o Guerrilla Collective e o Wholesome Direct.
De longe, o mais ambicioso representante deste grupo foi o Summer Game Fest, organizado por Geoff Keighley, criador do tradicional The Game Awards. Em parceria com múltiplos desenvolvedores e distribuidores de jogos, o evento pulverizou anúncios em transmissões especiais ao longo de três meses e trouxe conteúdos multiplataforma para espectadores, incluindo demonstrações de jogos apresentados em plataformas como o Steam.
Keighley, que chamou a iniciativa de uma “temporada” de anúncios, amarrou o Summer Game Fest até mesmo à Gamescom, fechando o calendário do evento virtual com a Opening Night Live, show de abertura da edição virtual que a feira europeia fez neste ano. Em novo formato, com transmissão simultânea em três países e sem público ao vivo, o The Game Awards 2020 foi também um exemplo de possível novo formto. Neste ano, o evento contou uma audiência 83% maior que no ano passado através de transmissões ao vivo, segundo Keighley.
De todas as iniciativas de 2020, o Summer Game Fest é aquela que chega mais próxima de uma “inovação” propriamente dita ao modelo de distribuição de conteúdo da indústria de games – e uma possível alternativa ao já cansado formato da E3. Vale lembrar, é claro, a E3 já estava em xeque antes mesmo de seu cancelamento oficial por causa da Covid-19.
Com o sucesso destas iniciativas digitais organizadas ao longo do ano, e a “normalização” deste tipo de conteúdo pelo público geral – que já se acostumou à ideia de eventos virtuais para a apresentação de novidades –, a tendência é que conteúdos online continuem firmes e fortes em 2021, ainda que longe de extinguir eventos físicos permanentemente.
Ao justificar a ausência da Sony na E3 2019, Shawn Layden, então chefe dos estúdios de PlayStation, afirmou que o evento havia se tornado "uma feira de negócios sem muita atividade de negócios" e que "o mundo mudou, mas a E3 não necessariamente acompanhou essa mudança".
A fala foi focada na E3, é claro, mas a lógica pode ser extrapolada para outros eventos físicos similares, já sem o mesmo peso que tiveram no passado. Em um mundo de influenciadores, de plataformas de streaming, e da distribuição virtual cada vez mais importante para indústria de jogos, o distanciamento social pode ter sido o pivô de uma nova alternativa de engajamento para o setor nos próximos anos.
Adiamentos, home office, e lançamentos conturbados
O impacto da Covid-19 na indústria, é claro, não se limitou aos eventos físicos do setor. Assim como várias outras áreas da economia, estúdios e publishers ao redor do mundo tiveram que se adaptar à nova realidade imposta pela pandemia, o que levou à adoção de medidas de trabalho remoto e, em muitos casos, impactou os calendários de lançamento de jogos.
Ainda que os primeiros casos da Covid-19 tenham sido registrados no final de 2019 – daí o "19" do nome associado à doença causada pelo vírus SARS-CoV-2 –, o estado de pandemia global só foi decretado oficialmente pela Organização Mundial da Saúde em março deste ano. Na ocasião do anúncio, o mundo registrava mais de 118 mil infecções em 114 países.
O posicionamento oficial da OMS levou uma série de organizações da indústria dos games a adotarem suas próprias medidas de quarentena. Com mais de 40 estúdios e escritórios ao redor do mundo, inclusive em São Paulo, a Ubisoft é um dos exemplos disso, tendo adotado home-office para seus funcionários assim que a pandemia foi decretada.
Bertrand Chaverot, diretor da Ubisoft para América Latina, afirmou que a adaptabilidade da operação da empresa ao home office foi rápida, mas que cada território da publisher se organizou de forma autônoma, de acordo com o avanço do contágio do vírus e recomendações de saúde e segurança locais.
“Logo no início, até pelas incertezas dos próximos meses, foi um período de muito replanejamento entre os times criativos internos, mas rapidamente adaptamos o nosso trabalho e projetos, tanto os que já estavam no radar quanto novos, ao novo sistema remoto”, contou Chaverot ao The Enemy.
No nível global, o “replanejamento” para a Ubisoft significou mudanças de planos no seu calendário de lançamentos por conta da Covid-19. Em maio, Yves Guillemot, CEO da Ubisoft, afirmou que a pandemia poderia impactar um dos grandes lançamentos que eram previstos para o ano de 2020 pela publisher. Em outubro, isso se confirmou: Far Cry 6 e Rainbow Six Quarantine acabaram ficando para o próximo ano fiscal, que começa em abril de 2021.
A Ubisoft é, é claro, só um dos exemplos desse impacto – o que não faltou em 2020 foram jogos sendo adiados para que equipes de produção pudessem se adaptar às disrupções causadas pelo vírus. Só para manter os exemplos em jogos de alto orçamento, os adiamentos incluíram também The Last of Us Parte II, que era originalmente previsto para maio e chegou em junho; Cyberpunk 2077, que foi adiado três vezes e saiu com diversos problemas técnicos só em dezembro; e Halo Infinite, que deveria ter chegado junto ao lançamento do Xbox Series X/S, mas só desembarcará nos consoles e PC em 2021.
No caso da Ubisoft, apesar do impacto observado pela empresa, Chaverot avalia que a adaptação dos times da Ubisoft à nova realidade foram positivos, e alguns aspectos positivos vieram a partir da migração para um sistema de home office. "Já é uma característica da Ubisoft pensar de maneiras disruptivas, mas essa migração impulsionou ainda mais que os times estabelecessem discussões recorrentes para fazer coisas novas e trazer novos marcos de projetos criativos já entregues por nós”, avaliou.
De acordo com o executivo, o confinamento permitiu algumas “entregas inovadoras” da companhia ao longo do ano, e muitos projetos físicos foram replanejados para tomar forma remota por meio de soluções criativas.
"Inovamos o formato de eventos remotos, fornecendo experiências de gameplay dos nossos jogos a criadores de conteúdo e jornalistas de suas casas, com baixa latência e alta qualidade; a área de eSports organizou, seguindo todos os protocolos, os maiores campeonatos profissionais que já tivemos no Brasil, que fecharam uma temporada de torneios histórico para Rainbow Six Siege; entregamos um campeonato de dança em parceria com a MAC Cosmetics, o Just Dance MAC Challenge, para seis países da América Latina", enumerou Chaverot. "Além de diversos outros projetos locais e globais que precisaram se adaptar a novos formatos, mas não impactaram as qualidades das entregas."
E não foram apenas estúdios e publisher de grande porte que foram afetados. No fronte dos estúdios independentes, mudanças também foram necessárias para adaptar projetos à nova realidade dos desenvolvedores trabalhando a partir de suas próprias residências. "Isso dificulta um pouco. Mas a gente continua tentando fazer tudo dentro dos prazos sem sobrecarregar ninguém. Continuamos o trabalho, mas entendendo os problemas que essa situação gera", contou Saulo Camarotti, fundador e CEO da produtora Behold Studios, em uma reportagem especial do The Enemy com desenvolvedores brasileiros publicada em maio deste ano.
Deixando o fronte de jogos e eventos de lado, duas empresas tiveram problemas ainda mais graves por conta da pandemia: Sony e Microsoft. Após meses de expectativa, novembro de 2020 seria o mês de consagração da nova geração de consoles de ambas as fabricantes, que colocaram seus novos dispositivos no mercado dentro de um intervalo de uma semana.
Os dois lançamentos foram celebrados como os maiores da história de suas respectivas famílias de consoles, ainda que Sony e Microsoft não tenham revelado oficialmente números concretos sobre os resultados do PlayStation 5 e Xbox Series X/S. Para consumidores, no entanto, a história foi outra.
Tanto o PlayStation 5 quanto os novos modelos da linha Xbox sofrem com problemas graves de estoque e geraram dores de cabeça para quem tentou comprá-los em pré-venda ou logo após o lançamento. Boa parte desses problemas veio da dificuldade das duas empresas em garantir a oferta dos produtos frente ao crescimento da procura – que aumentou, em parte, por conta do aumento do consumo de games durante o período de isolamento social. Não é certo, no entanto, como a pandemia afetou a produção dos novos consoles.
Esse aumento de demanda já havia sido notado pelas empresas há tempos, é claro. Em setembro, Jim Ryan, presidente e CEO da Sony Interactive Entertainment (SIE), afirmou que o PlayStation 5 teria mais unidades disponíveis no laçamento do que o PlayStation 4 teve quando chegou ao mercado, em 2013.
Em outubro, Ryan já havia mudado o discurso, e reconheceu que o produto poderia sofrer com problemas no lançamento por conta da demanda "muito, muito considerável" da pré-venda do PlayStation 5. Não deu outra: após um lançamento confuso, em que muitos consumidores não conseguiram adquirir as peças desejadas, a Sony precisou pedir desculpas publicamente pelo episódio.
Em uma entrevista para o The Verge pouco tempo após o lançamento dos Xbox Series X/S, Phil Spencer, chefe da divisão Xbox na Microsoft, também comentou o impacto da Covid-19 na indústria. Apesar de não comentar especificamente os problemas de pré-venda que a Microsoft também enfrentou, o executivo ressaltou impactos positivos para o setor – ressaltando o crescimento do interesse de novos consumidores por games.
"Acho que vimos a aceleração de alguns cronogramas e tendências nos jogos nos últimos seis meses. Definitivamente, aceleramos talvez um ou dois anos em termos de adoção de parte disso. Acho que os jogos sempre foram construídos na direção desse momento, de ser um verdadeiro unificador", comentou.
Jogos sociais multiplayers explodem
Seria impossível falar do ano de 2020 e do impacto da pandemia da Covid-19 nos games sem citar alguns dos títulos que explodiram em popularidade ao longo do ano – e foram vários. Pegando carona da fala de Spencer, é difícil negar que jogos eletrônicos tenham servido como um elemento “unificador” de pessoas em um momento no qual estávamos distantes de amigos e familiares e presos em casas.
Lançado em março, logo após a pandemia da Covid-19 ser decretada pela OMS, Animal Crossing: New Horizons foi o antídoto que muitos precisavam para esse mal. Animal Crossing não é uma série nova: seu primeiro título foi lançado há quase duas décadas para o GameCube. New Horizons, no entanto, pode ser considerado o primeiro título mainstream da franquia, e atingiu esse feito de forma espetacular.
Com a proposta de experiência escapista, na qual jogadores podem criar suas próprias ilhas paradisíacas habitadas por animais antropomórficos simpáticos, e com um elemento de multiplayer online, Animal Crossing foi tudo que pessoas ao redor do mundo buscavam para combater o distanciamento social imposto pela quarentena.
Em 31 de março, apenas 11 dias após seu lançamento, New Horizons já tinha vendido mais de 11 milhões de unidades. Em 30 de setembro, a Nintendo anunciou que o jogo havia ultrapassado oficialmente o marco de 26 milhões de unidades vendidas, o que fez dele o segundo jogo mais vendido da história do Switch. O impacto, é claro, foi muito além do financeiro. New Horizons virou um fenômeno social, e foi utilizado desde ferramenta de engajamento político pela deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez nos Estados Unidos até palco de um Talk Show criado inteiramente dentro do jogo.
"Fenômeno social" também é uma expressão que pode ser usada para definir Fall Guys: Ultimate Knockout, o battle royale ao estilo Olimpíadas do Faustão da Mediatonic, lançado pela Devolver Digital em agosto. Com uma das propostas mais inusitadas do ano em termos de gameplay, Fall Guys conquistou uma legião de fãs logo de cara ao ser lançado como um dos jogos gratuitos de agosto na PlayStation Plus.
Em algumas semanas, ele se tornou o jogo mais baixado da história do serviço de assinatura do PlayStation. Em novembro, o jogo ultrapassou 10 milhões de unidades vendidas no PC e foi oficializado pela Valve como um dos títulos mais vendidos do ano no Steam – ao lado de pesos-pesado AAA lançados neste ano como Cyberpunk 2077 e Doom Eternal.
Aliás, sabem quem mais estava nessa lista? Among Us, é claro. Desenvolvido pela InnerSloth, o jogo multiplayer – que se aproxima de uma versão virtual do clássico “Máfia” – é um dos casos mais emblemáticos e curiosos do ano. A começar pelo fato de que Among Us não é nenhuma novidade: apesar de ter explodido neste ano, o jogo foi originalmente lançado em 2018.
Não há dúvidas, no entanto, que sua consagração se deve ao sucesso do jogo em aproximar amigos durante a pandemia, com sua jogabilidade acessível, divertida e que promove a intriga. E quem não gostaria de um pouco de intriga para dar mais emoção à chatice da quarentena.
Segundo dados divulgados em dezembro pela consultoria SuperData, Among Us teve meio bilhão de jogadores em novembro. O sucesso repentino do título fez a desenvolvedora InnerSloth mudar completamente seus planos para o futuro do game. Among Us 2, que já estava sendo planejado pelo estúdio independente, foi cancelado.
No lugar do jogo, a empresa focou em trazer mais conteúdos para Among Us e em levá-lo para outras plataformas. O título foi lançado recentemente para o Nintendo Switch e chegou ao Xbox Game Pass no PC – a versão para o console da Microsoft, que também estará no Game Pass, deve ser lançada em 2021.