Por basicamente uma década, a Valve tem sido o grande Deus-Imperador da indústria de games no PC: intocado, onipotente, e adorado por uma parte significativa de seus usuários.

Graças à verdadeira revolução trazida pelo Steam no fim da década de 2000, o mercado de PCs nos computadores ressurgiu das cinzas após anos de crises e controvérsias envolvendo métodos de instalação e controle de pirataria.

Isto tornou a empresa, em questão de poucos anos, uma das maiores potências mundiais da indústria de games como um todo, com um patrimônio estimado em bilhões de dólares, e virtualmente imbatível no setor comercial com uma base instalada de dezenas de milhões de usuários pelo mundo, além de ser dona de dois dos games mais populares para computadores: Counter-Strike e Dota 2.

O Steam não era a única plataforma/loja digital de games para PC, mas as únicas que chegavam perto de ser competidoras - se é que é possível chamá-las disso - foram o Origin, e apenas se você gosta muito dos jogos da EA, e o GOG, cujos produtos, modelo de negócios e até mesmo a base de usuários tem um nicho bem mais específico.

Agora, porém, o império monopolístico da Valve pode estar ameaçado, não só por competidores novos e (aparentemente) mais preparados do que predecessores, quanto por mudanças ao próprio ecossistema de jogos de PC e sua distribuição.

Épico

Obviamente, o principal novo elemento na equação é a Epic Games Store, nova loja do estúdio de Fortnite e Unreal Tournament que tem como objetivo (inicial, pelo menos) se tornar uma alternativa viável ao Steam.

De certa forma, faz sentido que a Epic Games tenha ambições de competir com a Valve no mercado do PC, já que ambas são empresas de capital privado com valor estimado em bilhões. A Epic, porém, fez sua fortuna por meio não só de Fortnite, como também pela licença da Unreal Engine 4, um dos motores gráficos mais versáteis da indústria, sendo utilizado seja por empresas gigantes como a Square Enix quanto por desenvolvedores independentes.

Em teoria, isso dá uma vantagem inicial dupla para a loja, já que a Epic tem uma linha de contato direta com diversos produtores de games, o que facilitaria o contato para incluir seus títulos no catálogo. Além disso, a empresa tem recursos para uma divisão de lucros mais chamativa em relação ao Steam, com 88% do valor de cada compra sendo revertida para os desenvolvedores.

A Epic também está oferecendo incentivos de exclusividade - temporária ou não - para desenvolvedores adotarem a loja como plataforma, com jogos como Super Meat Boy Forever e o relançamento de The Walking Dead: The Final Season.

Ainda é difícil prever o quanto sucesso a Epic Games vai encontrar com sua loja, mas ela parece bem mais interessada em quebrar o monopólio da Valve do que outros competidores.

Mas não é só isso.

Diáspora

Nos últimos anos, tem ficado cada vez mais claro que as grandes publishers não estão mais necessariamente interessadas em depender apenas do Steam para suas vendas no PC.

A primeira grande ruptura foi entre a Valve e a Electronic Arts, que em 2011 decidiu abandonar a loja - e dividir os lucros de games e DLCs - para investir em sua própria plataforma, o Origin.

Apesar de todas as controvérsias envolvendo o Origin nos últimos anos, não há nenhuma indicação de que a EA tenha se arrependido da decisão. E outras publishers estão adotando este modelo.

Nos dois últimos anos, a Activision essencialmente abandonou o Steam e decidiu transformar a Battle.net numa plataforma não só de jogos da Blizzard, como também para games como Call of Duty e Destiny.

A Bethesda também decidiu não lançar Fallout 76 no Steam. Considerando todos os desastres envolvendo aquele jogo, é difícil saber quais são os planos da publisher para seus outros jogos, e o vice-presidente de marketing Pete Hines chegou a dizer em entrevista que Doom Eternal “pode ou não” ser lançado na plataforma, “mas não foi decidido sobre nada por enquanto”, o que ao menos demonstra planos de não depender mais da Valve no futuro.

Filosoficamente, o plano de não é um movimento diferente de distribuidoras deixando a Netflix para investir em seus próprios serviços de streaming. Pelo menos, neste caso, as empresas não estão cobrando por estas plataformas.

… Ainda.

Sendo totalmente justo, a Valve parece ao menos interessada em manter grandes produtoras em seu catálogo, mudando até a forma de divisão de lucros de games com grandes números de vendas (para detrimento de desenvolvedores independentes, de acordo com críticas)

Erros

Pensando nisso, é importante também não desconsiderar os erros e tropeços cometidos pela própria Valve nestes tempos.

Por mais que, para certos círculos, a única falha da companhia seja sua incapacidade de contar até 3, a Valve fez uma série de erros e apostas que acabaram não dando certo.

As Steam Machines, por exemplo, foram tão irrelevantes que a companhia praticamente passou a ignorar sua existência, e o hardware do Steam Link parece não ter sido um grande sucesso também, embora seu aplicativo ainda possa trazer resultados.

Não só isso, a própria estrutura de curadoria da loja tem sido fonte de enormes controvérsias, com “shovelware” cada vez mais proeminente e um catálogo cada vez mais inchado e difícil de manejar.

A percepção da Valve como um lugar perfeito de se trabalhar também tem se provado exagerada, para se dizer o mínimo. A este ponto, os roteiristas dos jogos aclamados da companhia, como Erik Wolpaw e Marc Laidlaw (que chegou até a publicar um resumo da narrativa do que pode ser Half-Life 2: Episode 3 ou Half-Life 3) deixaram a companhia. Rich Geldrich, um programador que trabalhou em games como Portal 2 e Dota 2, fez uma thread no Twitter (via ResetEra) descrevendo um ambiente disfuncional e repleto de politicagem.

A thread não menciona nomes de específicos de empresas, mas em 2015 Geldrich foi bem mais claro.

“Oh eu quis dizer a Valve - quis manter as coisas mais vagas”, escreveu. “Acredite em mim, estou me segurando. Pior experiência minha vida.”

Há também o fato de que, após anos de hiato, a empresa finalmente lançou um jogo na forma do card game Artifact, e a resposta inicial foi… abaixo do esperado.

Obviamente, é possível que a Valve consiga se acertar novamente, e certos movimentos e aquisições como a Campo Santo (de Firewatch) indicam que há pelo menos planos para mudar a direção da companhia.

Mas, pela primeira vez em um longo tempo, parece que a Valve está em uma posição de desvantagem bem maior do que ela está acostumada.