Review: Shenmue III

Um game diretamente retirado de 2003

Por Jessica Pinheiro 31.12.2019 12H00

Se eu pudesse definir Shenmue III com uma palavra, usaria tranquilamente o movimento #throwbackthursday do Instagram (também abreviado como #tbt) para exemplificar. Essas publicações são onde a grande maioria das pessoas relembra com carinho de momentos, pessoas e/ou lugares, dedicando uma fotografia em sua linha do tempo pessoal e um texto apreciativo, repleto de nostalgia.

O terceiro Shenmue é um tanto disso. Ainda assim, reconheço que ele talvez seja muito mais - especialmente para quem é um grande fã dessa série de jogos. Que fique claro: não acho que Shenmue III tenha sido um game ruim, mas muito dessa frase é embasado pelo fato de que a existência desse título é um milagre. 

A inesperada aparição do criador Yu Suzuki para anunciar a aguardada continuação durante a E3 2015; o sucesso fenomenal de seu financiamento coletivo, os inúmeros atrasos em seu lançamento, as polêmicas com gráficos e com exclusividade… Tudo contribuiu para a fama (ou infâmia) desse game, de alguma forma nos últimos anos.

E também há o argumento de que Suzuki-san desenvolveu sua obra máxima com uma visão singular no final da década de 1990, conseguindo manter e aplicar na prática os moldes originais dessa idealização mesmo 18 anos após o lançamento de Shenmue II.

O que isso quer dizer? Significa que Shenmue III é quase como um game desenvolvido diretamente no início dos anos 2000, mas jogado em um buraco de minhoca para cair em nossas mãos quase duas décadas depois. Todavia, vale apontar que nesses 18 anos, a indústria de videogames mudou quase que completamente e, ainda assim, o criador de Shenmue se manteve fiel à sua visão, tanto em teoria quanto na prática.

Dito isto, tentarei me abster de comentar sobre o que Shenmue III poderia ter sido para apontar, obviamente, o que ele me entregou e como foi minha experiência. Vale ainda apontar que sim, joguei Shenmue I no Dreamcast, no início dos anos 2000 e, anos mais tarde, pude colocar as mãos em Shenmue II. O terceiro capítulo, portanto, não é um objeto estranho para mim. 

Ainda assim, acredito que o jogo tinha potencial para ser uma obra a frente de seu tempo, como foi em 1999 com o primeiro título - ainda mais levando em conta todo o dinheiro arrecadado na campanha Kickstarter. Mas vamos por partes…

Familiar, mas esquisito

Ainda hoje me lembro como foi mágico o momento em que joguei o primeiro Shenmue. Explorar as ruas de Yokosuka, vivenciar o dia a dia dos cidadãos, equilibrar a vida do protagonista Ryo Hazuki entre treinamento, trabalho e investigação, tentar acertar os botões do sistema de Quick Time Events (QTEs que, naquela época, eram uma tremenda novidade), desenrolar aquela típica história de vingança que parecia ter algo a mais…

As lembranças queridas ainda persistem e, ao rejogar o primeiro e o segundo Shenmue na coleção remasterizada lançada em agosto de 2018, tive uma experiência totalmente diferente. Percebi como a jogabilidade era travada, a movimentação e a animação dos personagens eram limitadas e os gráficos, obviamente, não eram mais tão bonitos como eu me recordava, embora os cenários, roupas e expressões ainda sejam extremamente detalhados.

Qual não foi a surpresa ao jogar Shenmue III e me deparar com uma experiência bastante parecida com a que tive experimentando a coleção Shenmue I & II Remastered? O gameplay do terceiro título se mantém quase intacto em termos de movimentação - é tão esquisito assistir o protagonista subir ou descer escadas… -, ainda existe um botão que precisa ser obrigatoriamente pressionado para que o herói execute boa parte de suas ações; e os combates ainda lembram, essencialmente, sua matéria-prima, Virtua Fighter. Isso tudo parece legal em teoria e é exatamente o que os fãs estavam esperando, sim, mas na verdade só torna a aventura massiva e principalmente datada.

Shenmue III é uma experiência atemporal: uma aguardada continuação que segue a visão, a autenticidade de seu criador, colocada em prática nos dois primeiros jogos lançados no final da década de 1990 e no início dos anos 2000; mas que essencialmente, parou por aí mesmo. O terceiro capítulo evoluiu muito pouco em relação a seus anteriores e, apesar de ser uma declaração apaixonada para os fãs de longa data, o título é bastante problemático em termos de produto.

Seu miraculoso lançamento ainda traz à tona problemáticas para a indústria da atualidade, em especial o culto excessivo à nostalgia, cujo principal contraponto é a inovação e a superação, além da busca por experiências modernas e diferenciadas (um beijo pra Death Stranding que fez uma tentativa desse gênero, ousando com uma nova proposta, neste ano).

E jogar Shenmue III apenas para reacender a memória afetiva me parece sem propósito. Ao final desse capítulo da vasta (e arrastada e clichê) aventura de Ryo, não tive momentos de reflexão ou de aprendizado, tampouco senti que cumpri meu dever.

Ao contrário: me pareceu só mais uma parte, mais do mesmo. E, antes que você argumente “poxa, mas nem todo game precisa passar grandes mensagens ou ensinar alguma coisa ao jogador, às vezes jogar por jogar é divertido”, saiba que eu concordo 100% com essa visão. Contudo, Shenmue III foi feito com uma quantia enorme de financiamento coletivo, 18 anos depois do lançamento do segundo jogo.

A indústria de videogames mudou e muito. E eu ainda nem citei como Shenmue I e II foram importantes para essa mesma evolução. Eles foram os responsáveis por colocar nos holofotes elementos de role-playing como a exploração junto com investigação; ciclos de dia e noite em um calendário que fazia diferença dentro do jogo (afinal, se você passasse muitos dias sem avançar na história e apenas vivesse a vida do protagonista, acontecia um Game Over bem traumatizante...); e combates ao melhor estilo jogo de luta; além dos próprios QTEs já citados neste texto anteriormente.

A série Yakuza, que eu pessoalmente adoro, é inspirada por Shenmue e ela conseguiu, sem muita dificuldade, superar seu antecessor espiritual em praticamente todos os aspectos. E se Shenmue I e Shenmue II revolucionaram a indústria na época de seu lançamento, era esperado que o terceiro capítulo fizesse algo semelhante.

Porém, novamente, Shenmue III traz poucas novidades. Me pareceu que Suzuki-san apenas quis continuar a história de sua obra, sem se importar muito com melhorias na jogabilidade ou com tentativas de trazer inovações em termos de mecânicas. E ainda assim, a narrativa continua arrastada, com poucos momentos marcantes e com um enredo que vai ficando cada vez mais clichê.

Novidades, mas nem tanto assim

Shenmue 3 continua exatamente de onde o segundo game parou. Em essência, o game é exatamente como os outros dois jogos: você precisa explorar os locais e investigar o que o enredo pede, conversando com os cidadãos e executando favores aqui e acolá. É preciso ainda arrumar algum tempo para trabalhar e treinar artes marciais.

Uma das novidades em relação a Shenmue I & II é que o protagonista agora se desgasta quando luta, trabalha ou simplesmente corre. Para recuperar a energia, é preciso consumir bebidas e comidas, ou ainda dormir. Essa mecânica não faz muito sentido já que o herói de Shenmue é um exímio lutador e, portanto, era de se esperar que sua constituição física fosse melhor. 

De toda forma, os combates possuem um sistema de progressão de habilidades, com técnicas que vão do nível 0 ao 10. Evoluir esses golpes especiais garante não apenas uma melhor memorização dos mesmos como também torna seu impacto cada vez maior, conforme forem evoluindo.

Além disso, treinar nos templos ou ainda, desafiar lutadores da região, faz com que a resistência a golpes e também a força dos mesmos aumente. Também é recomendado adquirir pergaminhos que ensinam novas técnicas, assim, a variedade de habilidades e a preparação do protagonista (e do jogador) será ainda maior.

Ainda em relação às novidades, agora é possível usar medicamentos durante as batalhas e, após algumas progressões específicas da história, o game permite que o jogador use uma espécie de “fast travel” para ir mais rápido do local A ao lugar B, ao invés de percorrer todo o caminho até o destino final.

Também pode-se coletar ervas, pescar, apostar seu rico dinheirinho em corridas de tartarugas e outros jogos de azar (incluindo em fliperamas e máquinas gashapon).... Enfim, a variedade de “coisas para se fazer” em Shenmue III se mantém no mesmo nível dos dois jogos anteriores. E há também side quests com cidadãos específicos, mas elas são opcionais, obviamente.

Por fim, existem ainda momentos de puro fan service e os fãs de Shenmue vão se deliciar com aparições mais do que especiais neste jogo, mas é só isso mesmo. As novidades e exaltações param por aí. 

Os fãs merecem mais

Claro, o preciosismo de Suzuki-san para manter sua obra extremamente fiel à visão original é admirável, mas teve um preço: Shenmue III é uma carta de amor aos fãs de sua obra, mas o jogo é destinado apenas a eles mesmo. 

Jogadores de primeira viagem podem se sentir incomodados com o design, o gameplay e os gráficos de Shenmue III, pois o título realmente parece perdido no tempo. Os combates são até que divertidos, mas exigem treino, o que pode afastar quem quer uma ação mais frenética; e a história e as respostas de enredo que ele entrega ainda podem instigar (apesar de não ter me surpreendido muito).

Por sinal, falando em plot, a narrativa é bastante arrastada e, apesar de seu clímax final ser bastante interessante, o momento é só tirado das mãos do jogador bruscamente, o que chega a decepcionar.

Para os desavisados de plantão que não sabem que a trilogia até então, cobre apenas 40% da história de Ryo, isso pode ser frustrante. E eis outra questão que o método de Suzuki-san abre: sabe-se que o diretor quer contar uma história dividida em pelo menos 11 capítulos, mas… Será que não caberia contá-la em outras mídias também?

Explicando de maneira simples, uma experiência transmídia enriqueceria a saga Shenmue, além de assegurar que a obra fosse finalizada. Mas isso é apenas divagação.

O saldo final de Shenmue III é… Bom, não é um jogo para todos. Na realidade, é apenas para os fãs. Mas ainda assim, nem é para todos os fãs, talvez só aqueles mais assíduos e que, há 18 anos, estavam sonhando com uma continuação.

É um game com qualidade técnica bem abaixo do comum, se comparado a outros jogos desse ano, mas ao mesmo tempo, que foi entregue da exata maneira que os fãs queriam e imaginavam. E isso quer dizer que ele é bom? Não, está longe de ser, especialmente levando em conta aspectos como gameplay, gráficos e inovação.

Mas está aí. Nasceu.

Nota do crítico