The House in Fata Morgana é um exemplo fantástico de representatividade queer
Visual novel de 2012 é virtuosa na apresentação da perspectiva intersex
Não faltam elogios a The House in Fata Morgana no que diz respeito ao brilhantismo da narrativa. O jogo, que divide a mesma nota no Metacritic que Elden Ring e Breath of the Wild, conquistou a crítica e o público com a complexidade do roteiro, que aborda uma história visceral sobre perdão e esperança.
Talvez até mais do que isso, o game é transcendente por outro motivo bem menos reconhecido: a fantástica representatividade queer.
A narrativa carrega sentimentos e perspectivas de não-conformidade de gênero que têm o potencial de ressoar fortemente com pessoas interssex e, possivelmente, trans.
Se você ainda não jogou The House in Fata Morgana, fica o aviso de que o artigo a seguir traz spoilers importantes da história do game.
Fugindo do tropo da miséria queer
Primeiramente, é importante ressaltar que o intuito deste artigo não é falar por pessoas interssex ou tentar, em vão, se colocar sob a ótica de suas vivências para analisar o personagem principal. Afinal, cabe somente a elas julgar o quanto Michel é ou não um bom exemplo de representatividade.
Na verdade, o que está em análise é a forma como o roteiro do jogo apresenta a perspectiva interssex, e experiências queer, no geral, debruçando-se sobre empatia e delicadeza para construir um protagonista orgulhoso e confiante sobre a própria identidade.
O grande diferencial de The House in Fata Morgana, no que tange a representatividade, é a eficácia do roteiro em, como poucos outros casos nos games, driblar um tropo bastante comum na mídia: a miséria queer.
Os jogadores devem se lembrar de ao menos um personagem queer que é retratado como vítima de sua identidade de gênero, introduzido na história somente como motivo de sofrimento e angústia social. Pois bem, é isso que se entende como miséria queer.
Felizmente, esse não é o caso de Michel Bollinger, um homem interssex. Revelado em um ponto avançado do game como o protagonista controlado pelo jogador, Michel nasceu sem órgãos reprodutores masculinos, sendo tratado como mulher por esse motivo.
A esperança infindável do caçula Bollinger
A família de Michel — em especial, a mãe dele — se recusa a aceitar a identidade do protagonista, insistindo em chamá-lo de “Michelle”. As vontades do garoto, como jogar xadrez com os irmãos ou treinar as habilidades com espada, são motivo de bronca. No lugar, bordado e bons modos são hábitos incentivados.
Porém, ignorar o óbvio se torna inevitável quando Michel alcança a puberdade e seu corpo ganha traços masculinos inegáveis. A família se choca com a revelação e, sabendo que a história se passa na década de 1090, a solução escolhida é prender o garoto em cárcere privado e culpá-lo por fazer um pacto com o demônio.
A existência de Michel passa a ser quase completamente ignorada, sendo motivo de vergonha para a família. Ainda aos 14 anos, o garoto é humilhado e torturado por aquela responsável por entregar as refeições dele.
Para salvar a vida de Michel, os irmãos dele o enviam para uma mansão deserta, destinado a permanecer completamente isolado e escondido dos olhos da sociedade.
Não se engane: o protagonista de Fata Morgana possui, sim, momentos de miséria e tragédia em sua trajetória — alguns dos quais são tão sufocantes que chega a ser difícil continuar a leitura. O jogador sente na pele o que é não ser ouvido, ter a própria existência negada.
A diferença está na forma como a vivência do personagem é contada.
Michel não demonstra remorso em relação à própria identidade de gênero, mas, sim, em relação à violência que lhe é causada por isso. Ser interssex não é um obstáculo na vida do personagem nem o motivo que o torna triste. Na verdade, a angústia dele é resultado da rejeição, do abuso, do medo e do isolamento que é obrigado a enfrentar.
Ele também não desiste, em momento algum, de comunicar a não-conformidade de gênero, por mais que isso seja tachado, na realidade medieval em que ele vive, como “bruxaria” e “profanidade.”
No fim, a identidade se torna a força motora do personagem, algo que o faz levantar do chão sem hesitar e continuar a caminhar em direção a dias melhores.
O que alimenta a esperança
É então que, pela porta da mansão, entra uma mulher. Giselle invade a vida de Michel como uma ventania, atravessando barreiras para provar que há chances para o amor e para a felicidade, apesar do isolamento imposto ao protagonista.
Ser interssex não destina Michel a uma vida triste e solitária. Ele encontra, sim, um relacionamento doce, divertido e forte o suficiente para persistir por eras a fio — algo que, honestamente, pouquíssimos têm a sorte de encontrar.
Mesmo que, em vida, a história de amor do Michel com Giselle tenha durado, efetivamente, apenas um mês, o protagonista passa o restante dos séculos lutando com toda a força que possui para reencontrar sua amada.
Assistir à história do casal se desenrolar na tela é extremamente reconfortante, pois os sentimentos e emoções são críveis. Por causa da dor que cada um carrega, Michel e Giselle relutam em baixar a guarda — e, quando se abrem um para o outro, a aceitação é mútua.
O protagonista de Fata Morgana é um dos raros exemplos de personagens queer que encontram um final feliz nas próprias histórias. Mais ainda, Michel é enaltecido pela personalidade resiliente, piedosa e altruísta.
O roteiro, escrito por Keika Hanada, não tira vantagem da miséria de Michel, mas afirma e celebra a identidade do personagem de forma respeitosa e surpreendentemente detalhada.
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The House in Fata Morgana está disponível para iOS, PS4, Nintendo Switch e PC (via Steam).
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