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Review: As Dusk Falls é uma experiência narrativa brutal e imperdível

Primeiro jogo da INTERIOR/NIGHT é um trunfo em relação à narrativa e arte

Por Helena Nogueira 18.07.2022 15H00

As Dusk Falls não traz qualquer inovação em relação a outros jogos narrativos já lançados. Ainda sim, com certeza, o título oferece um dos melhores enredos já criados no gênero. Como um drama interativo, o game é um trunfo da INTERIOR/NIGHT, estúdio formado por veteranos da Sony e Quantic Dream que têm esse como o primeiro jogo. Mesmo que não faça tanto sentido como uma experiência multiplayer, o game brilha graças ao estilo de arte único e à história brutal sobre como família interfere nas nossas vidas.

Reprodução: INT./NIGHT

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Estilo de arte

O primeiro elemento que salta aos olhos em As Dusk Falls é, com certeza, o estilo de arte. Os gráficos são formados por três elementos: captura de movimentos dos atores, ilustrações 2D em stop motion e cenários em 3D. O resultado é algo que lembra uma história em quadrinhos e, para criar dimensão e perspectiva, os personagens e elementos do cenário são dispostos em diferentes profundidades do quadro. Imagine pedaços de papel colocados juntos e espaçados entre si, com personagens à frente e plano de fundo atrás, e entenderá o que quero dizer. 

O que fica é a impressão de estar assistindo uma pintura ganhar vida. O movimento dos personagens é robótico e pula diversos frames — me lembrei de Hotel Dusk: Room 215, de Nintendo DS, que usava um estilo de arte similar. O diferencial é que, aqui, essa técnica é usada de forma genial: como os movimentos são desconexos, há sempre a expectativa do que o próximo frame pode trazer. Isso é essencial para a sensação de estar o tempo todo na beira da cadeira. Ainda mais nos primeiros capítulos, quando se desenrolam os acontecimentos que guiam o restante da narrativa.

Reprodução: INT./NIGHT

Mesmo que muito do que é mostrado na tela seja estático, é interessante perceber as soluções criadas pela INT./NIGHT para dar movimento às cenas — e o mais interessante é que essas ideias são aplicadas de forma tão orgânica que você pode não percebê-las logo de cara. Elementos como carros e portas são animados em 3D e se movem na velocidade normal. Se olhar fixamente para a tela, também perceberá que a câmera está em constante movimento, como se o cinegrafista estivesse a segurando na mão. Por fim, em cenas de perseguição, recursos como efeitos de luz e desfoque são usados para colaborar com a impressão de que o personagem está correndo. 

A trilha sonora e os efeitos de som são outro recurso usado para dar movimento e dimensão aos acontecimentos. Por exemplo, quando o jogador precisa fazer uma escolha importante, um chacoalhado acelerado e batidas de coração são usados para colaborar com a sensação de urgência do momento. É perceptível a inteligência da equipe de desenvolvimento no uso desses recursos, que são essenciais para intensificar a narrativa, a verdadeira âncora do jogo. 

História 

Reprodução: INT./NIGHT

As Dusk Falls tem um dos enredos mais interessantes que já vi em um jogo narrativo — e, se você é fã desse tipo de experiência, não perca a oportunidade de jogá-lo, sério. A história começa em 1998, em Two Rock, no Arizona, Estados Unidos, e foca no destino interligado de duas famílias que, ao longo de três décadas, sofrem com os resultados de acontecimentos traumatizantes.  

A narrativa se desenrola com uma sequência constante de escolhas morais (algumas delas me deixaram tão aflitas que tive de recorrer ao menu de pause para pensar um pouco), e cabe aos jogadores decidirem a forma como querem agir em cada cenário. Mas tome cuidado, porque a história chega a ser brutal e devastadora. Por exemplo, no meu primeiro gameplay, joguei tentando ser honesta, sincera e de coração aberto, e me vi refém das intenções de cada personagem e enfrentando perigos por confiar demais nos outros. 

As consequências são reais e diversas, e é maravilhoso perceber como elas se interligam através das décadas por meio das árvores de resultados disponíveis ao final de cada capítulo. Cada personagem é retratado com complexidade e humanidade, conforme acompanhamos a forma como cada um deles lida com as consequências e os impactos dos acontecimentos, inclusive em relação à saúde mental. 

Reprodução: INT./NIGHT

É importante destacar que As Dusk Falls lida com assuntos delicados que podem ser gatilho para algumas pessoas, e o próprio jogo cumpre o papel de avisar sobre esse conteúdo tanto no início da jogatina como antes do início dos capítulos. É notável aqui a sensibilidade do estúdio, que, em uma situação específica, dá a escolha dos jogadores pularem uma cena sensível, que termina automaticamente com um final positivo.  

A história é curta — bastam apenas 6 horas para terminar — e bem construída, mas cheguei ao final com a sensação de que foi entregue de forma incompleta. Faltaram respostas para mistérios chave da narrativa — por exemplo, um personagem teve o destino mudado drasticamente na última cena da minha jogatina, mas não tive a resposta de por que aquilo aconteceu. As Dusk Falls foi feito, sim, para que a curta campanha seja jogada muitas vezes, mas como me referi a um personagem não jogável, sinceramente, tenho minhas dúvidas se as respostas que procuro estão escondidas em algum lugar no emaranhado de ramificações possíveis. É uma pena que a história pareça parcialmente incompleta, como se o estúdio já planejasse o lançamento de um DLC complementar, mas isso não muda o fato de que os primeiros capítulos dessa história são arrebatadores e me fizeram refletir muito. 

Gameplay 

Reprodução: INT./NIGHT

Em As Dusk Falls, o gameplay fica à mercê da história. As ações dos jogadores se resumem a mover o cursor pela tela para fazer escolhas, engajar em eventos de ação rápida e interagir com o cenário para encontrar interações ocultas. 

A experiência é menos passiva, no entanto, em relação às ações rápidas, que aqui demandam que o jogador pare e pense, mas seja ágil na resposta. Os movimentos estão relacionados ao que acontece na cena e incluem mover o mouse, o direcional do controle ou o dedo na tela do celular para a direita, fazer movimentos em círculos ou responder com diversos toques seguidos.

Além disso, a ordem com que se interage com as opções no cenário e a velocidade das escolhas importa, já que o final de cada capítulo traz o mapeamento dos valores morais e o estilo de jogo de quem está no controle. Por exemplo, o valor “honra” aparece quando a maioria das escolhas mostra que há integridade e intenção de fazer o que é certo, e o traço “ético” aparece se o jogador é guiado por convicções morais fortes. É um recurso interessante pois permite comparar os próprios resultados com os de amigos, mas não vai muito além disso.  

Multiplayer

Reprodução: INT./NIGHT

As Dusk Falls foi criado para ser uma experiência multiplayer, mas é de se questionar a efetividade disso. O game possui modo modo co-op local e online, em que é possível criar um lobby para que até oito jogadores participem da jogatina, seja por meio de outros consoles ou usando o celular por meio de um aplicativo gratuito do jogo. 

Durante o teste, experimentei jogar o game com um segundo jogador participando pelo celular. É um recurso um pouco limitado pois, jogando dessa forma, é necessário que o participante acompanhe o game junto com o jogador principal, pois o controle de toque é usado para mover o cursor pela tela em que acontece a jogatina. Mesmo assim, é uma opção que permite que mesmo pessoas que não tenham console ou PC possam participar da experiência.  

Reprodução: INT./NIGHT

Jogando juntos, cada jogador seleciona a escolha de sua preferência, e o resultado é definido pela maioria dos votos. Caso dê empate, o resultado é definido aleatoriamente. E é justamente por causa desses dois fatores que fica a dúvida se, efetivamente, As Dusk Falls funciona como experiência multiplayer. O game é feito por escolhas morais difíceis e, visto que tudo é definido por votação ou aleatoriedade, o resultado nem sempre será o que todos querem. Fico imaginando as brigas que isso pode gerar em um grupo íntimo de pessoas, e como pode ser difícil que todos fiquem interessados e engajados durante toda a história. E já que há a possibilidade de sair insatisfeito da experiência, recomendo que, em um primeiro momento jogue, o jogo sozinho.

De qualquer forma, As Dusk Falls tem o potencial de, sim, ser uma experiência interessante de se transmitir ao vivo. É possível habilitar o game para que os espectadores, por meio do chat da Twitch, votem para definir as escolhas do game, de forma que é possível acompanhar os resultados e os valores morais do grupo que está interagindo com a transmissão. 

Acessibilidade 

Reprodução: INT./NIGHT

Sendo uma experiência que se resume aos reflexos e velocidade das respostas dos jogadores, o jogo dificilmente seria acessível em condições normais. Contudo, a INT./NIGHT demonstra preocupação com proporcionar uma experiência que seja acessível para uma variedade de jogadores. Por exemplo, fiquei positivamente surpresa com o fato de que, logo quando abri o jogo, uma voz foi reproduzida automaticamente com a narração dos botões necessários para entrar no menu inicial, mesmo que eu nem mesmo tivesse ativado essa opção. 

O menu de acessibilidade do título dispõe de recursos e ferramentas variadas. Além de configurar o tamanho e a cor das legendas, é possível ativar narração descritiva para o menu e para o jogo como um todo, estender o tempo do cronômetro das respostas e alterar os comandos necessários para ações rápidas. Jogadores com deficiências motoras, por exemplo, podem alterar as ações rápidas para serem apenas um clique, sem que seja necessária resposta rápida. Ainda sim, é notável  a ausência de filtros de cor e mais opções para jogadores com deficiências visuais, recursos que o estúdio pode escolher adicionar no futuro por meio de atualizações. 

As Dusk Falls também está disponível completamente em português do Brasil, desde a dublagem e legendas até a interface do usuário, permitindo que o público brasileiro aproveite a experiência sem barreiras de idioma.

Uma experiência que perdura com o jogador

Reprodução: INT./NIGHT

Quando o jogo foi apresentado, fiquei com a impressão de que seria como Life is Strange — um título narrativo cheio de momentos de contemplação e de muita emoção. Ambos são, sim, movidos por escolhas morais do jogador, mas As Dusk Falls é uma experiência mais brutal, angustiante e regada à adrenalina. É uma história sobre família e a influência (tóxica ou não) que esse grupo pode ter em nossas vidas. 

As Dusk Falls não inova nem reinventa o gênero, mas a experiência de jogá-lo foi como assistir a um bom seriado criminal — daqueles que ficam nos nossos pensamentos e nos fazem ter vontade de mergulhar na história novamente assim que for possível. Sendo o primeiro lançamento do estúdio INTERIOR/NIGHT, formado em maioria por mulheres e sob o comando de Caroline Marchal, líder de game design de Heavy Rain e Beyond: Two Souls, o estúdio merece o reconhecimento pelos méritos do título, principalmente em relação ao enredo e ao estilo de arte. 

As Dusk Falls chega em 19 de julho para Xbox Series X|S, Xbox One e PC (via Steam). O jogo estará disponível no lançamento no Xbox Game Pass e Xbox Cloud Gaming (Beta).

Nota do crítico