Review: Anthem
Incompleto e maçante, Anthem sofre de crise de identidade como serviço
A vida de Anthem nunca foi particularmente fácil: desde seu anúncio original, durante a conferência pré-E3 da Electronic Arts, em 2017, o jogo gerou mais desconfiança do que empolgação entre fãs da BioWare por sua proposta bem diferente do que crescemos acostumados a esperar da produtora.
Ao invés de um RPG single player em um universo recheado de histórias impactantes e personagens memoráveis, teríamos um looter shooter online com foco em multiplayer e no formato de um “jogo como serviço” – uma clara tentativa da Electronic Arts de pegar carona no modelo de sucesso de franquias como Destiny e The Division.
Ainda assim, muitos resolveram dar uma chance para o estúdio. Afinal, é injusto amarrar uma desenvolvedora ao seu passado, e não é porque a BioWare deixou sua marca através de um tipo específico de jogo que não pode – ou deve – explorar outros gêneros.
Mas após mais de duas semanas com Anthem em mãos, o sentimento que fica é de frustração. Frustração não porque Anthem é um jogo necessariamente ruim – mesmo combinados, os vários defeitos do título não fazem dele uma experiência terrível.
A frustração vem de todo o potencial não realizado de Anthem, um jogo que trai a si mesmo com uma espécie de crise de identidade: na tentativa de ser um shooter de ação multiplayer misturado a um épico narrativo de ficção científica, o game não entrega consistência em nenhum dos dois aspectos. Só uma experiência incompleta e maçante.
Um mundo e um jogo inacabados
Anthem é mundo inacabado, criado por deuses que usaram uma força apelidada de Hino da Criação para moldar seu universo, mas que foi abandonado para trás antes de sua conclusão.
O resultado disso é que tudo em Anthem é caótico e está sempre em transformação. Em seu universo, a sobrevivência de humanos depende de fortalezas e cidades muradas – como Forte Tarsis, o hub central da trama do jogo – que funcionam como bolsões de civilização em meio à natureza selvagem da região, conhecida apenas como Bastion.
Na trama, os jogadores encarnam freelancers, membros de um grupo de especialistas que viram seus dias de glória ficarem para trás, mas que seguem cumprindo contratos para outras facções do jogo utilizando suas poderosas Lanças, armaduras robóticas ao melhor estilo Homem-de-Ferro.
Por si só, essa premissa daria a Anthem uma estrutura sólida para sustentar o modelo de jogo como serviço. Mas, na prática, bastam algumas horas para notar que a ideia de um mundo inacabado não se estende só à história e esbarra também no próprio gameplay.
Além da boa quantidade de bugs detectados por jogadores desde seu lançamento – incluindo problemas com drop de loot, com o dano desregulado de armas e até com o travamento do PlayStation 4 –, Anthem passa a sensação de ser um jogo inacabado, que em vários momentos deixa a desejar na quantidade e na diversidade de conteúdo.
Um dos exemplos mais incômodos está na pouca diversidade de armamentos e equipamentos disponíveis para as Lanças, limitado a um punhado de modelos diferentes por categoria de arma e que não dá a densidade esperada em um looter shooter – principalmente frente ao rival Destiny 2 ou até mesmo quando comparado à clássicos do gênero, como Borderlands.
Apesar de ter as armas de equipamentos como parte central da recompensa pelo grind, missão atrás de missão, são sempre os mesmos itens encontrados ao final da batalha – com apenas alguns status melhorados ou com nível de raridade maior –, o que cansa rápido.
Não ajuda o fato de Anthem oferecer uma seleção limitada de estilos de missão: todas envolvem, de uma forma ou de outra, o mesmo roteiro: voar de um lugar para outro, enfrentar inimigos e repetir. Objetivos secundários envolvem ficar parado em um local por um tempo determinado para decodificar algum item, defender um ponto específico de ondas de inimigos ou até busca por artefatos espalhados pelo cenário para silenciar uma relíquia – nenhum deles, no entanto, é particularmente empolgante.
Entre tudo isso, o game ainda encaixa uma sequência de telas de carregamente que atrapalham a experiência – incluindo uma irritante tela de loading que arrasta o jogador de volta para os colegas de missão caso ele fique para trás do grupo.
Até mesmo os cenários de visual espectacular de Anthem – definitivamente um dos pontos altos do jogo – ficam repetitivos depois de algum tempo. O jogo combina montanhas, florestas, cavernas e ruínas de forma orgânica, e evoca bem a ideia de um mundo inacabado e em constante mudança. Mas não há sensação de recompensa pela exploração desse mundo expansivo e, em pouco tempo, os cenários fantásticos de Bastion perdem o brilho após algumas sessões de jogo dentro no Modo Livre.
É claro, é compreensível que, na condição de um jogo como serviço, o conteúdo de Anthem será expandido nas semanas e meses que virão conforme novas atualizações sejam lançadas. Ainda assim, o encantamento com o universo e com a beleza de Anthem tem uma vida útil curta, que acabam perdendo charme e se tornando repetitivos após as primeiras horas com o jogo.
Combate agrada
Apesar da falta de diversidade de equipamentos e de tipos de missão, o combate de Anthem ainda funciona como uma de suas forças. O jogo tem elementos únicos que fazem dele uma experiência bem diferente do que está disponível atualmente para jogadores que buscam por ação.
Existe uma barreira inicial para principiantes, já que as escaramuças de Anthem são um tanto quanto confusas no início do jogo, e a sequência de introdução não faz um trabalho tão bom para apresentar, ao mesmo, a história e as mecânicas do jogo.
Anthem possui indicadores de dano confusos, símbolos de status estranhos e inúmeras explosões coloridas voando na tela. Mas a prática leva à perfeição, e logo que os sistemas vão ficando mais claros para o jogador – a partir de quando toda a ação se torna divertida e fluida.
Em especial em Lanças como o Colosso, um poderoso tanque equipado com armamento explosivo e uma metralhadora rotatória, a sensação e moer ondas e mais ondas de inimigos é bastante compensadora – e, ao estilo de Doom, como os inimigos oferecem drops de munição e de vida quando morrem, o incentivo para continuar atirando é sempre constante.
Falando no Colosso, aliás, vale também destacar que as quatro lanças disponíveis no lançamento de Anthem dão ao jogador um tão necessário respiro de diversidade, com quatro estilos de jogo diferente. Além do já citado tanque, Anthem tem outros três modelos de armadura que cumprem com alguns arquétipos clássicos de RPGs – o guerreiro (Patrulheiro), mago (Tempestade), e o assassino (Interceptador). Todas elas são bastante diversas entre si e oferecem jogabilidade variada e diferentes estratégias de combate.
Em comum, elas possuem apenas a ótima mecânica de voo de Anthem, que é outro de seus aspectos acertados. Tanto na hora do combate, que se aproveita de cenários com bastante verticalidade para permitir que o jogador enfrente seus inimigos quando e como quiser, quando em passeios pelo mundo aberto do game, o voo das lanças melhorou consideravelmente desde o beta de Anthem e é bastante satisfatório.
É uma pena, no entanto, que o jogo não consiga trazer mais sinergia entre as quatro armaduras diferentes em seu multiplayer. Apesar de incentivar ao máximo que seus jogadores participem de missões com outros três companheiros, a experiência que tive com Anthem é que, na esmagadora maioria das vezes, todos os quatro integrantes do grupo tendem a não se comunicar diretamente através do VoIP.
Como as missões tendem a exigir pouca integração e coordenação entre jogadores para serem concluídas, a sensação é de estar jogando sozinho o tempo todo – duas são as exceções: nos raros e simples puzzles de algumas missões e quando você é derrotado por algum inimigo e fica esperneando enquanto espera ser revivido por algum de seus aliados.
No mais, há um deslize considerável no sistema de combos, uma das mecânicas de combate mais importantes de Anthem, principalmente no late game e em dificuldades maiores. O deslize não é o sistema em si, que permite dar um dano maior e em área contra inimigos, coordenando equipamentos que “iniciam” e que “detonam” os combos, mas sim o fato de que os combos não são claros para o jogador e exigem alguma dedicação extra para serem compreendidos e utilizado de forma efetiva por um grupo que tende a não se comunicar.
Espectador da própria história
Apesar do foco em jogabilidade multiplayer, Anthem foi vendido pela BioWare com o conceito “nosso mundo, sua história”, uma tentativa de apaziguar ânimos de fãs e garantir que o título teria uma narrativa envolvente e independente do modo multiplayer. Na prática, a promessa não se cumpre.
“Hub” da história de Anthem, o Forte Tarsis se apresenta como a área povoada pelos NPCs do jogo e, novamente, impressiona pela atenção aos detalhes e pela ambientação, que combina referências que remetem ao universo retro-futurista de Star Wars a uma clara inspiração em arquiteturas e culturas do Oriente Médio.
Os personagens também mostram que a BioWare se empenhou para deixar o desastre de Mass Effect Andromeda para trás, e possuem boas animações, boa interpretação e expressividade – ainda que poucos sejam carismáticos o suficiente para chamar a atenção.
No entanto, a história proposta pela BioWare se mostra distante do padrão estabelecido pelas grandes franquias do estúdio, com uma trama desinteressante que é agravada por vários pontos de atrito ao longo de seu decorrer.
Um deles é a dificuldade de se conectar com qualquer um dos personagens do jogo. Diferente de séries como Mass Effect e Dragon Age, os NPCs não acompanham o jogador em sua aventura e não desenvolvem um relacionamento próximo ao jogador, o dificulta a conexão com a narrativa de Anthem.
De certa forma, o resultado disso que é os NPCs acabam assumindo a forma de “estátuas de cera” clássicas de MMOs, que parecem estar sempre no mesmo local do Forte Tarsis e que existem apenas para dar missões e oferecer diálogos expositivos ao jogador. Além disso, o deslocamento dentro do Forte, feito em primeira pessoa, torna a navegação entre um personagem e outro extremamente lenta e maçante.
Falta vida aos NPCs de Anthem, o que impede que o jogador desenvolva relacionamentos próximos com aqueles personagens – as opções de interação através de diálogo também são consideravelmente limitadas, oferecendo apenas duas variações de resposta em alguns pontos da conversa, que não mudam o desenrolar dos eventos, apenas servem como forma de dar algum tipo de personalidade ao Freelancer do jogador.
Saindo do Forte Tarsis e indo para as áreas selvagens de Bastion, enfrentar as missões da história também não são uma tarefa que recompensa.
Apesar do combate divertido, as missões tomam, em sua maioria, a forma de "fetch quests", nas quais os jogadores vão de um ponto para outro do mapa em busca de algum item, pessoa ou informação, enquanto recebem informações pelo comunicador - o que dá ao jogador a sensação de ser apenas um espectador da própria história, não um protagonista dos eventos que se desenrolam.
Só o começo
Anthem chega na disputa pelo setor de jogos como serviço com uma série de problemas: bugs que ainda preocupam a comunidade, conteúdos limitados e uma narrativa distante do que a BioWare entregou no passado.
Mas apesar do lançamento complicado, a própria natureza de Anthem permite que suas falhas sejam corrigidas. Casos de jogos recebidos com frieza, mas que conseguiram se reinventar não são raros na indústria, e o novo título da EA tem um potencial que ainda pode explorado – em especial, através do lore de seu universo expansivo e de seu combate divertido, ágil e vertical.
Para isso, no entanto, a BioWare deverá ir na contramão da premissa do próprio jogo: não abandoná-lo ao caos primordial que caracteriza o universo de Anthem, mas retrabalhá-lo para dar mais solidez e volume ao seu mundo inacabado, facilitando a justificativa de uma aquisição de preço cheio.