Como Death Stranding "previu" a vida em tempos de coronavírus

Jogo da Kojima Productions - quase acidentalmente - reflete a situação atual do mundo

Por Ives Aguiar 03.04.2020 14H33

Hideo Kojima possui o título de visionário dentro da indústria de games e (embora muitos não estejam de acordo com esta afirmação) seus trabalhos são capazes de prever hábitos e tendências com base na tecnologia  ainda que de forma inesperada.

Assim como Metal Gear Solid 2 imaginou um futuro onde a desinformação digital atrapalha o progresso da humanidade quase uma década antes das fake news interferirem em processos políticos mundo afora, agora Death Stranding, por incrível que pareça, nos mostrou um mundo em que as pessoas, isoladas, dependem de entregas para sobreviver - algo que estamos vivendo na pele com a pandemia do COVID-19.

Nunca esperamos viver uma pandemia de qualquer forma, muito menos essa causada pelo coronavírus. Nós não consumimos arte sobre eventos catastróficos querendo que aconteça conosco, embora é claro que pensamos se agiremos da mesma forma que os protagonistas se algo do tipo realmente acontecesse.

Sony Interactive Entertainment/Divulgação

Autores também não tendem a criar essas histórias querendo que sejam verdade, mas como uma projeção de como podem acontecer e por que. Um segmento da ficção científica é totalmente baseado nessa noção: o cultuado escritor Isaac Asimov disse, em defesa do valor do gênero, que ele cria uma sociedade artificial uma que não existe, ou que pode existir no futuro, mas não necessariamente  e retrata eventos no contexto dela, na esperança de que você possa se ver em relação ao que vivemos.

É um alerta, uma reflexão do pode ser ou uma realidade alternativa que muitas vezes não está tão longe de acontecer. Quando essa ficção se prova correta nos argumentos que monta, como devemos reagir? Certamente o autor pode entrar em um conflito, feliz por ter feito as projeções corretas ao mesmo tempo que está triste por que sua teses se comprovaram reais.

Confesso que fiquei preocupado quando vi o vídeo do cosplayer chinês que fez uma cápsula para a sua filha inspirada em Death Stranding, porque ao assistir ele justificar o filtro de ar para que seu bebê respire com qualidade, logo associei as questões que estamos vivendo com o coronavírus a alguns temas do jogo.

Claro que não fui o único, mas os paralelos não começam e terminam no fato de Sam ser um entregador e nos estarmos dependentes de entregas, vai além disso.

O evento chamado de Death Stranding tornou inviável ficar ao ar livre, a chuva acelera a passagem do tempo quando entra em contato com objetos e organismos que toca. Seres sobrenaturais chamados de EPs, quando tocados, geram uma grande explosão no local e são dificilmente detectados sem a tecnologia (ou aptidão) adequada.

A infraestrutura governamental entrou em colapso, gerando pequenas colônias remotas; não existem mais estradas, tornou-se inviável viver ao lado de fora. Com isso, a sociedade teve que se adaptar, as cidades restante se transformaram nas Cidades Unidas da América (UCA) e desenvolveram a sua própria internet, denominada de Rede Quiral.

Com o novo governo a UCA criou a BRIDGES, uma empresa com o intuito de reconectar a sociedade após o Death Stranding.

As estruturas pertencentes da BRIDGES seguem o mesmo padrão arquitetônico, sendo grandes prédios semelhantes a grandes embarcações com um única entrada principal. Ao adentrar, parece uma enorme garagem, com um lugar para ir para os aposentos e um terminal que permite conversar com o responsável daquela instalação. Nas cidades da UCA, é possível ver de longe que os prédios servem como uma enorme fachada, protegendo os habitantes. Em outras instalações, como os centros de distribuições, a única coisa visível é apenas o prédio.

Em quase momento algum você entra em contato com outros personagens além dos principais, geralmente outros membros da BRIDGES responsáveis pela distribuição da região, ou sobreviventes isolados. E não há interação física: você interage com o hologramas de quem precisa de seus serviços na maior parte do tempo.

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Death Stranding cria um contexto para que Sam Bridges seja o maior protagonista de todos. Ele possui DOOMs, condição que permite uma conexão maior a entidades do outro lado, no seu caso consegue perceber a presença dos EPs, mas não consegue vê-los. Além disso, é um repatriado, capaz de se reconectar ao corpo e voltar a vida ao morrer. E tem afefobia, medo de ser tocado, o que o torna avesso a interações físicas e também emocionais.

É fácil perceber por que Sam é conhecido como entregador lendário: é imortal e consegue sobreviver às condições precárias, além de seus fluidos corporais funcionarem como armas contra EPs. Não só isso, mas basta prestar atenção nas reações quando uma entrega é feita, todos são extremamentes gratos e até honrados em vê-lo.

Você entrega uma variedade enorme de objetos, sejam eles essenciais ou não. Mas ao realizar um trabalho para o Médico, por exemplo, fica claro o quão importante é aquilo que está fazendo. As mecânicas de equilíbrio, peso e distribuição de cargas são burocráticas justamente para dar um impacto maior naquilo que carrega, reforçando que você está colocando nas costas algo importante para alguém ou para um grupo de pessoas, e é preciso ter o maior cuidado para lidar com isso.

É uma sensação boa, depois de atravessar uma nevasca terrível para entregar suprimentos, ver que eles estão em ótimas condições. Nos faz perceber o valor e importância dos profissionais que estão do lado de fora lutando contra tudo e todos para gente.

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Pode parecer uma conclusão boba, mas quando digo isso não me refiro só aos entregadores em si, mas a todos os profissionais que precisam se expor ao perigo.

Como dito antes, Sam não entrega só para funcionários da BRIDGES. O Médico que citei acima, por exemplo, é um prepper. É um comportamento que existe no mundo real, sendo pessoas que estão altamente preparadas para situações complicadas em escala nacional ou global. Em diversas mídias costumam ser retratados como malucos, que acham que qualquer dia desses uma catástrofe vai acontecer e constroem bunkers personalizados, estocando todos os suprimentos necessários para sobreviver.

Já existem discussões de como, após anos sendo ridicularizados, hoje podem ser as pessoas mais preparadas para uma situação como o COVID-19. No universo do jogo, eles são retratados mais como indivíduos que tinham decidido há muito tempo que não podiam mais confiar na nação para cuidar deles.

Um email do personagem Ancião, por exemplo, fala sobre o mercado de abrigos que existia antes do Stranding, com opções para qualquer situação, e entrando em detalhes sobre três opções mais seguras, umas delas sendo uma versão doméstica que era mais acessível financeiramente falando.

Os preppers não são retratados como malucos, e ao ler os emails e entrevistas disponíveis em seu arquivo, é possível entender como a engrenagem desse universo funciona pela ótica deles. Nem tudo que está escrito ali é primoroso (é até asqueroso em certos momentos), mas é interessante ver como estão usando a chuva temporal para acelerar processos na agricultura, qual significado de ter uma nação em uma sociedade fragmentada e as consequências do isolamento em relacionamentos.

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É com eles que existe uma outra ótica sobre essa ideia de se de conectar: enquanto uns, como o Médico, estão mais dispostos por ajudar a comunidade com a realização de mais diagnósticos por exemplo; outros não conseguem acreditar que esse governo seria diferente dos outros, preferindo ficar isolados e no escuro.

Como é um jogo de videogame, basta realizar diversas entregas até que, no fim, eles cedem à ideia, mas isso não soa artificial. Mostra que o isolamento social completo não é o caminho, e existem maneiras de estabelecer conexões mesmo sem contato físico. São nesses emails e entrevistas que são possíveis perceber paralelos com o nosso isolamento, uma vez que entenda os conceitos e jargões.

Esta é a grande contradição de Death Stranding. Sua relevância em relação ao coronavírus é acidental, a narrativa principal é confusa, ele se perde muito nos conceitos que cria e a cada dois minutos alguém quer te explicar algo da maneira mais chata possível recheado de jargões. Não vai a lugar nenhum tematicamente, pois desde o começo ele faz questão de repetir diversas vezes como se o jogador tivesse algum problema de atenção.

Mas existe uma construção desse universo, um aprofundamento que não está visível, que está escondido e é nele onde mora o ouro e conversa com todo o resto do jogo.

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Isso aconteceu sem querer, era para ser um comentário sobre o Brexit e o Trump, mas pela natureza dos acontecimentos casou de conversar com o que estamos vivendo. É sim desconfortável e está longe de ser uma ótima história distópica, mas cria uma ótima discussão sobre uma sociedade em isolamento.

Kojima novamente fez um jogo socialmente relevante, uma pena que dessa vez foi sem querer.