No fim dos anos 1980, a Sega sabia que precisava mudar para conquistar o mercado de consoles.

Embora fosse uma potência nos arcades desde os anos 1970, em particular graças aos títulos icônicos de Yu Suzuki como Out Run e Space Harrier, no setor de videogames domésticos, seus produtos eram nada mais que coadjuvantes para o domínio da Nintendo.

Tanto o Master System, de 1985, quanto o Mega Drive de 1988 foram engolidos pelo Famicom/NES em seus primeiros anos no Japão e EUA - infelizmente para a Sega, nem todo país é o Brasil -, seja pelo interesse do público ou pelas práticas mais dracônicas da Nintendo envolvendo desenvolvedoras third party.

A empresa precisava mudar sua imagem para chamar a atenção do público - e nada melhor do que um mascote a altura de Mario para isso.

Para isso, a Sega fez um concurso interno para funcionários criarem suas próprias propostas para a nova cara da empresa. As propostas foram desde um cachorro, um tatu (que mais tarde virou Mighty the Armadillo) e até um careca bigodudo de pijama, que foi reaproveitado para um outro personagem icônico: o Dr. Ivo "Eggman" Robotnik.

No fim, a figura escolhida foi "Mr. Needlemouse", um ouriço azul com sapatos vermelhos elaborado pelo artista e designer Naoto Ohshima, que chegou a testar a popularidade do design em primeira mão.

"Eu planejei uma viagem para Nova York enquanto a discussão rolava internamente", explicou Ohshima, décadas depois, em uma painel da GDC 2018 (via Polygon). "Eles disseram 'Definitivamente queremos ver algo no estilo de um velho de bigode, algo com espinhos, e também queremos um personagem que pareça com um cachorro."

Ohshima, em sua viagem, fez um sketch dos três conceitos e mostrou para as pessoas que andavam pelo Central Park.

"O ouriço foi o mais popular", disse. "As pessoas apontavam para ele e gostavam. O segundo foi Eggman. O terceiro foi o cachorro. Isso foi uma surpresa agradável. Eu me perguntava 'por que será?' Minha conclusão [...] é que para muitas pessoas pessoas que escolheram o ouriço, ele transcendia raça, gênero e diferentes tipos de pessoas."

sonic-the-hedgehog-mr-needlemouse
Sonic Scene/Reprodução

Outro motivo pela escolha foi a facilidade de desenhar o personagem, que citou como um diferencial de personagens icônicos como Mickey Mouse.

O livro A Guerra dos Consoles, de Blake J. Harris, vai ainda mais longe: em certo momento, Mike Fischer, um funcionário americano trabalhando na Sega japonesa, revela o que Ohshima estava pensando quando criou a ideia do ouriço Needlemouse:

"Eu só coloquei o Gato Felix no corpo do Mickey Mouse", teria dito.

Correndo rápido e quebrando barreiras

Mesmo a contragosto do então CEO da Sega of America, Michael Katz, o personagem foi escolhido como novo salvador da empresa, e foi aí que o design de Ohshima se juntou ao gênio de programação Yuji Naka, que com sua equipe tocou o projeto do jogo, com o protagonista ganhando um novo nome: Sonic the Hedgehog.

Internamente, o protótipo do jogo já impressionava, e a Sega americana, agora liderada pelo executivo Tom Kalinske, viu de cara o potencial do personagem não só como mascote da empresa, mas como ícone cultural.

Não que não houvesse problemas: a arte conceitual enviada originalmente aos EUA pelo Japão era talvez um pouco... demais... para o público local, com direito a caninos protuberantes, jaqueta de couro, uma guitarra e uma namorada humana conhecida como (e inspirada por) Madonna.

... E, como comprovado anos depois, dar uma namorada humana a Sonic é um erro.

Kalinske, um veterano da indústria de brinquedos que por anos na Mattel na linha de bonecas Barbie, junto de outros membros da Sega of America, conduziu uma repaginação do personagem, removendo itens desnecessários e talvez agressivos demais, mas ainda tentando manter seu visual descolado.

sonic-the-hedgehog
Sega/Reprodução

Curiosamente, uma das inspirações mais claras do executivo e sua equipe era um fenômeno recente entre as crianças, as Tartarugas Ninja, que conseguiram atingir com sucesso este meio-termo de rebeldia com apelo popular massivo.

Foi preciso de certa persuasão por parte do time americano, mas no fim a Sega japonesa e seu chefe, Hayao Nakayama, cederam ao visual repensado por Kalinske e sua equipe, ficando com o estilo com o qual estamos acostumados hoje.

"Sonic não seria apenas a face da companhia, mas também representaria seu espírito: o pequeno azarão que se move com uma velocidade louca, e não importa qual obstáculo estiver na sua frente, ele nunca vai parar de seguir em frente", escreve Harris em A Guerra dos Consoles. "Sonic incorporava não só o espírito dos funcionários da Sega of America, mas também o zeitgeist cultural do início dos anos 1990. Ele capturou o espírito do 'tanto faz' de Kurt Cobain; a arrogância graciosa de Michael Jordan; e perseverança e 'faça o que for preciso' de Bill Clinton."

Com um novo fenômeno em potencial, a Sega sabia que deveria jogar suas cartas corretamente. E foi exatamente isso que fizeram.

sonic-the-hedgehog
Sega/Divulgação

Declaração de guerra

Não tendo nem perto do orçamento da Nintendo, e com o lançamento do jogo de Sonic acontecendo poucos meses antes da chegada do SNES ao mercado norte-americano, a Sega of America precisavam acertar golpes pontuais para chamar a atenção do público.

Para isso, Kalinske e sua equipe usaram e abusaram de diversas táticas diferentes, seja com propagandas de rádio como via capas de revista - definidas pelo executivo como "pequenos outdoors" - como forma de chamar atenção de um novo público.

Mas o maior trunfo da empresa foi o de colocar as cópias do jogo junto com novas unidades do Sega Genesis (como o Mega Drive é conhecido nos EUA), e vendê-lo US$ 50 dólares mais barato que o recém-chegado Super Nintendo. A empresa chegou até a trocar cartuchos do muito menos chamativo Altered Beast no lugar do novo game

Era uma aposta pesada, dependendo do sucesso de vendas de jogos futuros para compensar o prejuízo inicial, e caso não funcionasse significaria essencialmente o fim da empresa no Ocidente.

... Não que seja preciso dizer, mas a estratégia funcionou.

Não só isso: como uma profecia cumprida, Sonic não virou apenas o mascote oficial da Sega, ganhando renome e sucesso comparável ao de seu principal competidor no mundo dos games, Mario.

sonic-mario-tokyo-2020-olympics
CHARLY TRIBALLEAU / AFP

O maior diferencial era que Sonic era novo e diferente. Enquanto Super Mario World mantinha muitos dos mesmos conceitos de Super Mario Bros. 3, Sonic the Hedgehog era comparativamente muito mais rápido e frenético.

Além disso, graças a sua estética mais rebelde e aos planos de publicidade da Sega of America, Sonic começou a ter apelo popular com adolescentes e um público até mais velho do que isso, o que ajudou a remover a imagem da mídia como algo simplesmente voltado para crianças como anteriormente.

Tudo isso definiu um campo de batalha com um mascote e empresa de cada lado, e finalmente, colocou a Nintendo no contrapé, enfrentando uma ameaça séria após anos de hegemonia no mercado.

sonic-the-hedgehog-macys-day-parade

Sonic na Parada de Ação de Graças da Macy's, em 2013

Andrew Toth / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / AFP

O legado do ouriço

Mesmo após todos estes anos e altos e baixos, tanto de Sonic quanto da própria Sega (que já não fabrica mais consoles desde 1999), é inegável que a empresa e seu mascote mudaram radicalmente o panorama da indústria até então.

De uma mera coadjuvante, a Sega virou a grande rival da toda-poderosa Nintendo entre os consoles, se vendendo como uma alternativa mais subversiva e "adulta" do que sua concorrente nos consoles, com vários títulos que refletiam esta perspectiva, incluindo a versão sem censura de Mortal Kombat.

Se por um lado isso causou muita confusão nos anos seguintes, com direito a audiências no Congresso americano e a formação da ESRB como órgão de classificação indicativa da indústria nos EUA, também mostrou que consoles domésticos não precisavam ser considerados apenas brinquedos de criança, com um público bem maior em potencial.

A Sega também foi responsável por diversas ações e tendências que vemos até hoje na indústria, com talvez a mais curiosa sendo a padronização (e importância) da data de lançamento de um jogo como um evento especial, graças à campanha Sonic 2sday, em que a terça que marcava o lançamento de Sonic the Hedgehog 2 sendo considerada um dia festivo e especial.

Embora a este ponto os tempos de glória da Sega como uma fabricante de consoles já tenha ficado muito para trás, seu impacto e presença na indústria são inegáveis. E muito disso deve-se ao ícone que surgiu como o simples "Mr. Needlemouse" de Naoto Ohshima.