Review: Psychonauts 2 é uma aventura esquisita, hilária e que valeu a espera
O novo game da Double Fine transborda de boas ideias e tem uma direção de arte absolutamente fantástica
A quantidade de detalhes e capricho nos mapas super coloridos de Psychonauts 2 ainda me deixa impressionado. São centenas de áreas variadas e densas de conteúdo que trazem trechos que provavelmente levaram meses pra serem finalizados pelos desenvolvedores e onde ficamos por meros segundos.
Após explorar muitos cantinhos escondidos tentando pegar colecionáveis e rir com muito gosto dos diálogos incrivelmente divertidos, é inevitável parar e admirar a quantidade de carinho que foi colocada nesse jogo.
Psychonauts 2 é um show não apenas visual, mas traz conceitos, situações e desafios de jogabilidade que fazem dele um projeto muito maior e mais ambicioso que o game original. Sim, esta não é apenas uma excelente sequência, mas também um dos melhores lançamentos de 2021.
Contexto para novatos
Para quem está chegando agora, vamos contextualizar um pouco. No ano 2000, o desenvolvedor Tim Schafer deixou a LucasArts, onde ele trabalhou em sucessos como Monkey Island e Full Throttle, pra fundar seu próprio estúdio, o Double Fine. O primeiro jogo desse novo time foi Psychonauts, que saiu em 2005 e que, apesar de não ter sido um estouro de popularidade, recebeu ótimas avaliações da crítica e virou um sucesso cult nos anos seguintes.
Em 2015, o game foi portado para PC, ganhando ainda mais fãs, e o Double Fine, que naquela época era um estúdio independente, começou uma campanha de financiamento coletivo pra fazer uma continuação.
Essa campanha foi um grande sucesso. E na metade do desenvolvimento dessa sequência, a série Psychonauts ganhou um episódio de interlúdio (Rhombus of Ruin), pra dispositivos de realidade virtual, e o Double Fine foi adquirido pela Microsoft. Em resumo, o intervalo de 16 anos entre o game original e o game desta resenha foi cheio de acontecimentos e um gerador de expectativas.
O que é Psychonauts 2?
Mas, afinal, qual é a desse game? Psychonauts 2 é um jogo de plataforma 3D, mais especificamente do subgênero “collectathon”. Ou seja, você pula, explora e, para avançar, precisa coletar muitos colecionáveis.
Mas ele também é um jogo de ação com combate, habilidades especiais e elementos de progressão do personagem. O diferencial é que, além de um visual muito diferente e estranho, o jogo leva você a entrar na mente de outras pessoas e cada uma delas traz um mundo com uma temática distinta.
Por dentro do enredo
Você controla Razputin Aquato, apelidado de “Raz”. Ele é um acrobata de 10 anos, vindo de família circense, que tem poderes psíquicos e que nos dias anteriores — que correspondem aos dois jogos que saíram antes deste — realizou grandes feitos heróicos que levaram ele a entrar para a organização dos Psiconautas. Nesse universo, os psiconautas são agentes psíquicos que lutam contra vilões. Uma mistura de Jean Grey, Charles Xavier e James Bond.
Se você não jogou o primeiro Psychonauts ou o game VR chamado “Rhombus of Ruin”, eu recomendo que você jogue pra ser melhor apresentado aos personagens e sacar mais das piadas e referências que rolam ali. Porém, se não for possível, fique tranquilo porque antes de a campanha começar aparece uma recapitulação dos principais eventos.
A história começa exatamente onde o jogo de realidade virtual terminou. Razputin, sua namorada Lili e os agentes Sasha, Milla e Oleander estão chegando à sede dos Psiconautas. Eles estavam resgatando Truman Zanotto, o líder dos Psiconautas e pai de Lili, que foi sequestrado pelo vilão Dr. Loboto.
Só que vários problemas começam a surgir. Loboto não agiu sozinho no sequestro e agora existe a suspeita de que há um infiltrado na agência. O Truman Zanotto continua desacordado e todos temem que algo sério tenha acontecido com ele. E o Raz, ao contrário das suas expectativas, não é tratado como um psiconauta quando chega à base e sim como o mais insignificante dos estagiários.
Assim, o roteiro assinado por Tim Schafer, vai explorando os personagens já conhecidos e trazendo novos. E praticamente todos, mesmo os estagiários apresentados como adolescentes chatos e bullies, acabam ganhando camadas de carisma em algum momento.
Os diálogos afiados e extremamente divertidos e o elenco de atores de voz, composto pelos veteranos dos jogos anteriores e por novas adições como Jack Black e Elijah Wood, é impecável. Eu não me lembro qual foi a última vez que ri com tanta frequência acompanhando conversas em um jogo. E é incrível como a piada recorrente do namoro do Raz com a Lili simplesmente não fica velha.
Mas, mesmo trazendo o DNA cômico de Schafer e da Double Fine, Psychonauts 2 é, tematicamente, um jogo bem mais sombrio e maduro comparado ao que veio antes. O enredo lida com temas como perda, remorso, dificuldade de perdoar, corações partidos e tragédias do passado.
É aqui que você entende o passado e presente da organização dos Psiconautas, além de descobrir quem são suas figuras-chave. E é aqui também que você conhece a família do Razputin e entende melhor outras questões deixadas em aberto anteriormente, como a maldição dos Aquato envolvendo água.
Eu encontrei uma ou duas inconsistências de continuidade conversando com NPCs, mas nada que invalidasse a narrativa excepcional do game. A cada nova virada e a cada revelação, a história vai ficando ainda mais instigante. Para os fãs mais antigos, a compensação é dobrada com momentos de fan service e perguntas respondidas. As missões finais deste jogo foram extremamente satisfatórias pra mim.
Pulo, porrada e bomba
Em questão de jogabilidade, Psychonauts 2 funciona como um platformer bem competente e responsivo. Raz dá pulo duplo, pulo em parede, escala, se agarra em beiradas e tem a habilidade de levitação, que confere mais velocidade, saltos maiores e a possibilidade de planar por poucos segundos.
As habilidades também contemplam exploração e combate e entregam poderes psíquicos que vão desde a tradicional rajada até novidades como a projeção mental. As batalhas podem se tornar meio caóticas eventualmente, mas vale reconhecer o esforço dos desenvolvedores em criar alguns inimigos que pedem uso de poderes específicos de uma forma bem criativa.
O inimigo mau humor, por exemplo, é completamente invulnerável a ataques diretos. A única forma de derrotar ele é usando a clarividência para ter acesso ao ponto de vista do inimigo e descobrir o ponto fraco dele, que está invisível em algum lugar no cenário.
Progressão e itens (muitos, muitos itens)
Raz tem um caderninho que traz todas as informações essenciais para progredir. Tem ali o seu nível, que pode chegar até o número 102 e gradualmente liberar aperfeiçoamento das habilidades; tem o inventário, com itens consumíveis; os mapas das áreas do jogo; listas de missões e muito mais. Os poderes também aparecem ali e precisam ser evoluídos manualmente com os pontos ganhos a cada vez que você sobe de nível.
Mesmo para um collectathon, a quantidade de colecionáveis em Psychonauts 1 era um pouco alta demais e esse número aumenta nesse segundo jogo. São dezenas de tipos diferentes. Alguns apenas completam missões paralelas, outros fazem você subir de nível, outros aumentam seu limite de saúde, outros servem como moeda do jogo e por aí vai. Leva algumas boas horas até você se acostumar e entender para que serve cada colecionável — ou pelo menos a maioria deles.
Os meus preferidos são os cofres de memória, que entregam informações importantes sobre o passado da pessoa que você está investigando mentalmente. Mas é impossível não admirar o empenho da Double Fine em criar tantos elementos únicos em vez de simplesmente replicá-los.
Por exemplo, os figments, ou “criações”, que são literalmente milhares de itens únicos diferentes. São esboços flutuantes representando imagens de pessoas, objetos e efeitos que ajudam a compor os cenários do game, que já são super recheados.
Uma direção de arte única, rica e esquisita
E não tem como falar de Psychonauts 2 sem mencionar um dos aspectos mais chamativos do jogo: a parte estética. Essa é uma franquia que chama atenção de cara pelo quão “estranha” e sem simetria é o aspecto dos personagens e das coisas.
Isso porque a direção de arte é essencialmente surrealista, com inspirações em stop-motions dos anos 90, que por sua vez trazem influências de expressionismo alemão — isso nas palavras da própria diretora de arte do jogo, a Lisette Titre-Montgomery, que nos contou isso em entrevista.
Mas, mesmo tendo esses movimentos artísticos de base, a premissa de entrar em várias mentes que trazem mundos diferentes oferece muitas possibilidades visuais. Em um momento você está em uma viagem psicodélica de arte LSD e no outro em um programa de culinária que parece uma mistura de Masterchef com Overcooked e uma pitada de Five Night at Freddy's.
Isso sem contar a inserção de vários elementos 2D misturados com o mundo 3D. Pelo fato do Razputin ainda ser uma criança em aprendizado, existem muitos assets e efeitos que fazem referência a traçados de lápis, recortes de papel, esboços... Aquele toque de fantasia infantil, sabe?
A estética de Psychonauts 2 é riquíssima. E, felizmente, ela é não apenas uma capa visual, mas está diretamente ligada ao design de level. O conceito base de cada mundo é que determina quais são os obstáculos e objetivos daquela missão. É a "ideia maluca" e de aparência impressionante que guia a brincadeira da fase. Seja jogando em caça-níqueis gigantes em um cassino ou procurando por livros em uma biblioteca megalomaníaca. A inovação é a regra do jogo.
Vale mencionar ainda o charme do “mundo real” dessa história, que é temperado com uma vibe de filmes e séries de espionagem dos anos 60, mas que não deixa de abordar o clima de acampamento de verão do game original — agora com muito mais espaço ao ar livre pra você explorar. O design de level do jogo é um dos mais variados e criativos que eu já vi e que só não é melhor por causa de algumas paredes invisíveis que você encontra.
Design de som é a parte mais fraca do jogo
Mas, pra mim, o único problema do jogo que não pude ignorar é o design de som. Assim como o game que saiu em 2005, Psychonauts 2 sofre muito com uma filosofia de design de som extremamente datada. O problema é que o jogo não sabe quando fazer silêncio.
Enquanto você está explorando uma área, coletando colecionáveis difíceis de alcançar ou tentando vencer um desafio, tem sempre muito falatório. Seja um NPC que não consegue calar a boca repetindo frases ou o próprio Raz descrevendo cada ação dele. Em algumas fases, eu cronometrei e a ausência de falas não durava 5 segundos. Em um dos chefes, cada vez que eu levava dano o NPC que tava do meu lado questionava por que eu levei dano.
E o pior é que as frases ditas se repetem de novo e de novo (e de novo). O falatório é tanto que é comum que as falas de um personagem atropele a do outro, no pior estilo Skyrim. Isso me decepcionou, especialmente porque era um problema bem presente no primeiro jogo — e que não foi resolvido — e porque a música, os efeitos sonoros e as vozes originais de Psychonauts 2 são maravilhosas. A imperfeição está em como e quando elas foram planejadas para ser executadas na gameplay.
Aspectos técnicos das diferentes versões
Entrando em aspectos técnicos, existem algumas peculiaridades entre as versões do jogo para cada plataforma. Quando Psychonauts 2 iniciou sua campanha de financiamento em 2015, foram prometidas versões para PlayStation 4, Xbox One e PC. Acontece que a Double Fine foi comprada pela Microsoft em 2018.
Os usuários de PS4 receberam suas versões e o jogo está à venda na PS Store, mas na atual nona geração de consoles, só existe Psychonauts 2 para o Xbox Series. Pois é, o game não poderia ser um exclusivo da marca Xbox, já que ele foi prometido há anos para os apoiadores da campanha que tinham PS4. Porém, nada foi prometido para o PS5.
Na prática, o game roda no PS5 por meio de retrocompatibilidade, chegando no máximo aos 1440p, que é a resolução máxima que o PS4 Pro entrega pra esse jogo. A diferença é que o PS5, por ter um melhor processador, faz 60 fps em vez de 30 fps. No PS4 padrão, o desempenho fica no básico 1080p e 30 fps.
Já no Xbox, a coisa varia muito. Full HD e 30 fps no Xbox One, 4K e 30 fps no Xbox One X e no Series X a resolução é de 4K e 60 fps ou 1440p e 120 fps. Eu joguei Psychonauts 2 no Series S, que oferece 1080p com 120 quadros por segundo ou 1620p, que seria o 3K de proporção 16:9, com 60 fps.
Infelizmente, a opção de troca por desempenho ou resolução não está nos menus do game e é preciso mexer nas configurações de display do console pra alternar entre elas. No fim das contas, a melhor versão do jogo está no Series X, se tratando de consoles, ou no PC, onde a resolução e a taxa de quadros vão até onde o seu hardware aguentar.
Recursos de acessibilidade
Outros recursos legais que Psychonauts 2 oferece estão na aba acessibilidade das configurações. Enquanto o game traz um desafio balanceado para pessoas acostumadas com o gênero plataforma, existem opções para facilitar a vida de quem não tem muita habilidade e só quer curtir a história. Nas opções é possível tirar o dano da queda, deixar o personagem invencível ou mesmo aumentar o dano causado em inimigos para suavizar a dificuldade do combate.
A interface também conta com várias opções de personalização. A principal pra nós, brasileiros, é a chance de localizar as legendas e os textos da UI em português do Brasil. Pessoas com daltonismo, que sofrem enjoo com tremor da câmera ou que tem dificuldade com texto pequeno, também podem ter uma experiência melhor ativando recursos de acessibilidade no menu.
Vale a pena?
A expectativa que se tem sobre uma sequência que demorou tanto para sair acaba contaminando a percepção que se tem de jogo. O primeiro Psychonauts foi um projeto extremamente arriscado e inovador e superar o sentimento de carinho que se criou sobre ele não é uma tarefa fácil. Mas a Double Fine conseguiu.
Eu acredito que Psychonauts 2 supera o original em tudo. Ele é mais variado, mais polido, mais suave de controlar e a expansão da mitologia e da história é tão bem-sucedida que faz os dois jogos anteriores parecerem ótimos prólogos para a real aventura que começa aqui.
Também é um jogo que lida com muita sensibilidade com o tema de transtornos mentais, sem vilanizar ou estigmatizar personagens com doenças psicológicas. O que é muito importante. Os fãs antigos e mais exigentes podem estranhar algumas mudanças mecânicas, como a substituição de algumas habilidades, mas o espírito daquilo que deu certo antes ainda está aqui.
Psychonauts 2 não é um jogo perfeito. A questão do áudio me incomodou um pouco, apesar de que há chances de que muita gente nem perceba. De qualquer forma, a experiência desta campanha, que pode ir de 12 a 20 horas, transborda e transparece muito cuidado, carinho e infinitas horas de trabalho dos desenvolvedores.
Este é claramente um projeto do coração do Tim Schafer e dos veteranos da Double Fine que, eu espero que, diferentemente do capítulo anterior, ganhe mais atenção do público. Se você gosta de jogos de plataforma e personagens carismáticos, eu não poderia recomendar mais que você adquira o game, e se você é assinante do Game Pass, jogar Psychonauts 2 é obrigatório.