O que se faz pro almoço um dia depois de causar uma revolução?
É difícil não me imaginar paralisado ao ser confrontado com a tarefa de criar uma sequência para Breath of the Wild. Em que direção seguir? Será que jogamos tudo fora pra tentar reinventar a roda de novo? Ou será que tentamos fazer mais do mesmo? As duas opções trazem o risco de alienar parte do público do Zelda mais bem-sucedido de todos, enfraquecendo o legado de um jogo que mudou a forma como mundos abertos eram concebidos e enxergados.
Mas a Nintendo não hesitou. Enquanto o mundo celebrava tudo o que Breath of the Wild era, eles lamentavam o que ele não tinha conseguido ser. Por mais impressionante que aquela Hyrule fosse, ela podia ter sido mais viva e povoada. A narrativa podia ter mais impacto direto do jogador e ser mais envolvente. E se Link conseguisse explorar mais espaços, e de maneiras mais interessantes? Também dava pra encaixar dungeons de verdade em algum lugar...
No fim, o novo Zelda joga muito de seu predecessor fora, e também faz mais do mesmo em muitos pontos. Mas o resumo da ópera é tão simples quanto é assustador de vislumbrar: Tears of the Kingdom é melhor que Breath of the Wild em absolutamente tudo – o triunfo dos desenvolvedores da Nintendo que, ao acordar, não pararam pra pensar no almoço e comeram o que tinha na geladeira. Afinal, a revolução não estava no passado – ela ainda estava em curso.
Pouco tempo após os eventos de Breath of the Wild, Link e Zelda exploram túneis escondidos abaixo do castelo de Hyrule. Eles estão tentando solucionar os mistérios de uma substância tóxica que eu tomarei a liberdade de traduzir para o português como ‘treva’ (já que a Nintendo se absteve), e se deparam com uma múmia ruiva aprisionada por um braço reluzente.
E como costuma ser quando alguém encontra uma múmia, ruiva ou não, tudo dá errado a partir de então. A Master Sword é destruída, Link perde seus poderes (no maior estilo Metroid) e Zelda desaparece. Na superfície, sem que nossos heróis saibam, eventos ainda mais dramáticos são desencadeados. E assim começa uma aventura que, como antecipamos, faz com que a de Breath of the Wild pareça pequena em comparação.
Quando desperta em um enorme arquipélago flutuando no céu, Link é colocado na mesma posição do jogador veterano de Breath of the Wild: a de alguém que está prestes a ser forçado a redescobrir um mundo que antes era familiar. Abaixo, Hyrule é tecnicamente a mesma, mas mudou muito – tanto pela ação de seus habitantes, quanto pelo cataclisma iniciado por aquela múmia. Uma força expedicionária concentra os esforços de reconquista e reconstrução do reino em uma nova base perto do castelo, por exemplo, enquanto um enorme rombo aparentemente sem fim no chão cospe treva para a superfície logo ao sul.
Este é o primeiro grande prazer de Tears of the Kingdom: a rara oportunidade de retornar a um mundo de Zelda que já conhecíamos antes. Pela primeira vez, Link é tratado por seus interlocutores como mais do que um maluco com ódio por vasos alheios; ele é reconhecido por muitos como o espadachim que protegeu o reino da calamidade. Ao chegar a um estábulo, seus cavalos de antes o aguardam, prontos para mais uma jornada.
Se um dos maiores méritos de Breath of the Wild era ter criado um mundo aberto revolucionário e delicioso de explorar, um dos triunfos de Tears of the Kingdom é povoar esse mundo, antes vazio, com inúmeras novidades na forma de personagens, oportunidades e desafios. Mais do que literalmente qualquer outro mundo aberto que já encontrei nos games, a nova Hyrule parece viva: ela pulsa com um nível de construção de mundo inigualável, que transparece tanto nas coisas grandes, quanto nos pequenos detalhes.
Na medida em que Link começa a explorar o Noroeste de Hyrule, pessoas pelo caminho o alertam que uma incomum tempestade alterou dramaticamente o clima da região de Hebra. Os sinais vão ficando progressivamente mais claros: monstros gélidos circulam os lagos, e a paisagem começa a embranquecer. A temperatura cai, e o herói precisa vestir roupas mais quentes ou se aquecer com uma boa sopa para suportar o frio antes de chegar a um vilarejo Rito muito menos vibrante do que sua memória conjurava. A neve incessante os privou de recursos, e eles estão passando fome.
Tears of the Kingdom conta essa história, e tantas outras, com uma naturalidade assombrosa. Todos os elementos do jogo, da aparência das paisagens ao comportamento dos inimigos, passando pelos diálogos e pelas próprias mecânicas de sobrevivência, convergem para que você entenda perfeitamente os desafios que Hyrule está enfrentando e como você pode ajudar.
Mesmo em uma escala menor, o jogo também demonstra grande esmero com os detalhes. Uma jovem Rito no vilarejo pensa em inventar uma maneira de congelar monstros, mas não consegue sair para coletar um componente importante por causa da tempestade. Ela precisa de frutas gélidas. Por sorte, Link já carrega algumas consigo – e, no diálogo, ela reconhece isso ao comentar que sente um friozinho vindo de seu bolso. E, nossa, ele também carrega consigo outro item congelante, uma geleia de Chuchu branco! Não é exatamente o que ela queria, mas também serviria pra resolver o problema, caso Link não se importe em compartilhar.
Todos os personagens têm nomes e personalidades próprias, e muito a dizer. Suas palavras e comportamentos mudam de acordo com coisas como o que Link está vestindo, fazendo por perto, ou até mesmo se eles estão encontrando o herói pela primeira vez, ou não. É impressionante.
E também muito triste, por ser um aspecto essencial da aventura aos quais muitos brasileiros não têm acesso pela ausência de uma tradução para o português. Conversas revelam objetivos paralelos e segredos de maneira muito sutil, sem literalmente marcar algo no mapa como na maioria dos mundos abertos – o que fomenta a exploração de uma maneira muito mais natural, mas também dificulta a vida de quem literalmente não entende o que está sendo dito.
Como guardião do reino, Link não tem muitos momentos de paz: ele precisa encontrar e ajudar Koroks, caçar monstros fujões dentro de cavernas, resolver os problemas dos outros... Além de desvendar os mistérios de toda uma nova leva de mais de uma centena de Shrines, que são mais variados e únicos que os de Breath of the Wild, e também de dezenas de sidequests, que em sua grande maioria são muito mais carnudas que os objetivos paralelos do jogo anterior.
A densidade de conteúdo em Tears of the Kingdom é marcante. Não importa onde você esteja, sempre há algo para se fazer nas redondezas imediatas. E o mapa é muito maior do que o de Breath of the Wild: afinal, enquanto o jogo anterior tinha ‘apenas’ a superfície de Hyrule a ser explorada, este permite que você navegue livremente pelos céus para visitar centenas de ilhotas flutuantes igualmente povoadas com segredos e desafios. E o mesmo vale para o subterrâneo de Hyrule.
Pois é: Tears of the Kingdom não é dois mundos abertos em um – é três. Acessíveis por enormes falhas no solo, as profundezas do reino oferecem uma experiência de exploração única, mais sombria, que força o jogador a depender de flores que iluminam partes da paisagem para conseguir ver o que está ao seu redor.
É um cenário verdadeiramente assustador, que força o jogador a agir de maneira diferente. Por conta da infestação de trevas, os monstros que habitam o subsolo conseguem reduzir temporariamente a contagem máxima de corações de Link a cada golpe – o que torna o combate ainda mais perigoso. Isso sem falar na escuridão, que oculta cenas perturbadoras não encontradas na superfície.
Controlar Link neste jogo é estar em um constante estado de superexposição sensorial: a sensação é a de que, a qualquer momento, você pode estar fazendo uma de duas mil atividades diferentes em cada uma das três camadas de Hyrule. Mas é você quem cria seu ritmo: você pode cavalgar pela superfície, ir aos céus e depender de monstruosidades mecânicas para voar de uma ilhota para outra, ou então enfrentar o breu do subsolo em busca de riquezas quando quiser. O ideal, creio eu, é alternar entre cada um dos três estilos de exploração, de maneira que a experiência nunca fique repetitiva.
Permeando tudo o que foi mencionado até agora está o novo arsenal de poderes de Link, que são muito mais versáteis e complexos do que os que o herói usava em Breath of the Wild.
Através do Fuse, Tears of the Kingdom alivia os anseios daqueles que abominavam o sistema de armas e escudos quebráveis; eles continuam quebrando após o uso (já que o jogo depende dessa limitação para ser recompensante), mas podem ser ‘recauchutados’ ao serem acoplados a diferentes itens encontrados pelo cenário, como pedras ou restos mortais de monstros derrotados.
O Ascend facilita a exploração, ampliando a capacidade de movimentação vertical de Link – algo importantíssimo para um jogo que abrange três camadas sobrepostas de Hyrule. É uma habilidade aparentemente simples, mas que o jogo não cansa de reaproveitar de maneiras surpreendentes – assim como o Recall, que interrompe a trajetória de um objeto e o faz voltar no tempo, e que é igualmente útil em quebra-cabeças e em combates.
Mas a estrela do show é a Ultrahand, que permite que Link dê novas formas ao mundo ao seu redor. Com ela, o herói pode consertar charretes, ou então montar um monster truck off-road automatizado. Ele pode consertar a infraestrutura de Hyrule, ou encontrar soluções nada elegantes para problemas simples. É, de todos os tempos, um dos exemplos mais impressionantes de uma mecânica de videogame que treina, recompensa e celebra a criatividade do jogador em pensar fora da caixinha.
Controlar a Ultrahand é um pouco difícil no começo da aventura, mas logo a memória muscular assume o controle e tudo fica intuitivo. E para aqueles que se orgulharem de alguma de suas criações, há uma função secundária chamada Autobuild que conjura, a qualquer momento, construções passadas a partir de um recurso amplamente disponível chamado Zonaite.
Com este arsenal de poderes viciantes de controlar, as recompensas materiais por vencer um quebra-cabeça tornam-se secundárias. Em Tears of the Kingdom, a verdadeira recompensa está no processo de resolver o quebra-cabeça da maneira que você preferir: pode ser da maneira mais genial e elegante possível, ou da mais truncada e esquisita.
O combate em Tears of the Kingdom não muda muito em relação ao jogo anterior, mas ganha mais profundidade por ser pontuado pelo uso dos novos poderes, pela capacidade de Link de fundir itens às flechas para inúmeros resultados diferentes, e também pela enorme variedade de inimigos – algo que Breath of the Wild não tinha.
Dezenas de criaturas novas povoam as três camadas de Hyrule, enquanto monstruosidades antigas retornam com novas variantes, que trazem pequenas mudanças a desafios já familiares.
Quebra-cabeças e combates, unidos, culminam no retorno das dungeons em um formato mais familiar para fãs dos Zelda clássicos. Muito mais complexos que as Divine Beasts de Breath of the Wild, os templos que Link explora no novo jogo ainda têm um foco simples no desbloqueio de alguma porta ou mecanismo central, mas têm personalidade própria e, mais importante ainda, mecânicas únicas que se assemelham aos itens temáticos das dungeons do passado.
Não: Link não consegue um Hookshot. Em vez disso, ele ganha habilidades como um impulso lateral de vento e uma cambalhota explosiva através de seus companheiros, como o jovem Tulin, que acompanham Link em tais dungeons.
A experiência de explorar esses calabouços conjura memórias de Ocarina of Time e afins, principalmente quando eles atingem seu clímax em épicas batalhas contra chefes que dependem do uso das habilidades de cada companheiro. São pedacinhos do Zelda clássico inseridos no contexto de uma nova era da franquia.
Os companheiros? Eles ficam com você para o resto da aventura após a dungeon, na forma de espectros azuis que também lutam automaticamente, além de poderem soltar suas habilidades sob demanda. Eles podem ser invocados ou desativados a partir do menu, e passam a servir essencialmente como uma party de RPG.
Em termos de gráficos, apesar de ser muito semelhante a Breath of the Wild, Tears of the Kingdom oferece uma variedade muito maior de deleites visuais – em grande parte por conta da existência dos mapas no céu e no subsolo, mas não apenas por isso. Até mesmo paisagens familiares do primeiro jogo são revisitadas com novos detalhes, e às vezes parecem lugares completamente novos.
Quando o jogador usa a Ultrahand para movimentar grandes construções no ar, em certos cenários, a taxa de quadros por segundo despenca – mas apenas em momentos em que é compreensível que isso aconteça. No geral, a performance do jogo é muito estável, e torna possível até mesmo saltar de centenas de metros de altura e mergulhar em um lago na superfície abaixo sem qualquer transição ou tropeço técnico.
Maior não é necessariamente melhor – mas, quando a experiência é melhor, maior é bom demais. Essa é a perspectiva que Tears of the Kingdom traz.
É um jogo que expande o escopo e a escala de um título que, ao que parecia em 2017, não tinha como crescer. E que também mira diretamente nas reclamações dos jogadores do anterior, grandes e pequenas, como a inexistência de uma maneira de escalar paredes escorregadias (agora existe) ou de uma história contada em tempo real, com mais impacto do protagonista (que também passou a existir).
The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom é a real verdadeira definição de um jogo de mundo aberto. Aberto não apenas para que você explore, mas também para que você monte e desmonte, com limites difíceis de enxergar. Um triunfo monumental de uma mídia que se reinventa constantemente, mas raramente a passos tão largos.
Eu consideraria a revolução de Zelda concluída, mas tenho certeza de que, com o tempo, verei que eles ainda têm mais cartas na manga.
- Lançamento
12.05.2023
- Publicadora
Nintendo
- Desenvolvedora
Nintendo
- Censura
12 anos
- Gênero
Ação, aventura
- Plataformas
Nintendo Switch