Meu pai saiu do balcão do aeroporto com aquele ar pensativo de quem está pronto pra encarar umas boas horas de viagem. Passagem na mão, mochila nas costas e um olhar cheio de dúvidas no rosto.
Estas dúvidas eram pra mim, claro.
"Você veio aqui só pra ver eles, né?"
Bom, desta vez, ele tinha seus motivos. Estava de saída pra fazer um curso na Alemanha enquanto o resto da família ficaria em Curitiba — e eu não era o tipo de acompanhar até ali, no aeroporto a 30 minutos do centro da cidade.
Mas aquele sábado em especial era diferente dos outros fins de semana preguiçosos na frente do videogame: alguns dos melhores jogadores de Street Fighter do país estavam desembarcando naquele mesmo aeroporto em 20 minutos.
E eu — hehehe, porque não né —, tinha oferecido carona pra eles.
Deu trabalho para convencer meu pai de que dar um "boa viagem" pra ele também era importante, claro. Acho que ele nunca comprou minhas explicações e sempre deixava o silêncio preencher a resposta nesses casos, mas não duvido que ficou feliz em me ver de pé em pleno sábado de manhã.
(Satisfeito por ter derrubado o filho da cama, como sempre diz)
Assim, passou então pela senhorita com a maquininha na mão e seguiu em frente até o horizonte de máquinas e pessoas cobrirem a sua forma magna. Já eu e minha mãe descemos o lance de escadas em V e esperamos o povo na área de desembarque.
A Comunidade
Antes de tudo, deixa eu trocar uma ideia de como eu conheci essa galera. Em 2007 conheci o mundo mágico dos videogames competitivos. Do nada, bateu aquela pergunta enquanto jogava: "meu, será que existem profissionais desse jogo aí?"
Fui parar em sites escondidos pela internet falando sobre torneios que pagavam viagens pelo mundo – e com premiações em dinheiro, patrocínios, fã clubes e tudo que faria qualquer campeonatinho entre amigos parecer uma mera bagunça no meio de um show de rock.
Alguns jogadores até recebiam salário. Pouco, mas ganhavam.
A ideia de ganhar dinheiro pra jogar videogames é algo que desperta brilho no olhar em qualquer garoto com uma espinha na testa e... bom, eu era um desses. Naveguei por notícias de eventos na Suécia que nunca conseguiria ir. Descobri partidas nos Estados Unidos gravadas em uma qualidade horripilante, daquelas de câmeras vagabundas mesmo, mas com jogadas fenomenais que provavelmente nem chegaria perto de executar.
Aprendi que existem pessoas que escavam um jogo na caçada em busca das joias mais valiosas entre eles, se lançando em uma estratégia nova, uma técnica diferente, uma armadilha safada pra deixar o adversário com aquela cara de almoço estragado.
Pulava de site pra site, jogo pra jogo, campeonato pra campeonato. Foi lá que conheci o Portal Versus, um fórum sobre jogos de luta. E mano, fóruns são quase relíquias da internet. Hoje em dia, em pleno 2020, não existem muitos por aí. Mas lá, no início dos anos 2000, eles serviam para as pessoas se organizarem em torno de um tema e soltarem suas opiniões e discórdias sobre ele.
Tinha fórum de tudo também: De peça de computador; histórias de terror; alienígenas e teorias da conspiração; e por aí vai. No caso, a pira dessa galera em questão era a verdadeira definição dos cinco minutos de soco sem perder a amizade. Eles aprendiam como literalmente descer a porrada no oponente da melhor forma e sem sair do lugar. Nada de esmurrar fisicamente, é claro, tudo através de uma tevê e um controle — mas ainda assim, como dói no ego apanhar pra alguém na frente de uma telinha.
E passei anos navegando por lá. Conversando, trocando ideia, conhecendo o pessoal que também era apaixonado como eu; enfim, aprendendo sobre os jogos de luta que mais amava.
Lá tinha tópicos para cada um dos bonecos de Street Fighter, e vídeos de combos insanos de Marvel vs. Capcom 2 em que o cara escolhia o Magneto e ficava te jogando como uma peteca alucinada de um lado pro outro.
Também lembro de artigos teóricos, muitos deles traduzidos do inglês, sobre como não existe apelação nos videogames e como o jazz pode te ensinar a ser um jogador melhor.
E, como disse antes, o pessoal também anunciava eventos por lá.
A maioria era bem simples, como jogatinas em algum boteco no interior de São Paulo ou um encontro dentro de um fliperama resistente ao tempo pelo Brasil.
Mas volta e meia brotava um campeonato maior e mais organizado. E, em setembro de 2011, a segunda edição do Treta Championship ia rolar em Curitiba.
Só pra começar, o evento adotou esse nome incrível em homenagem a um grupo de Orkut chamado "PS3 Tretas". O primeiro campeonato foi pequeno, mais local, mas a continuação já tava chamando todo mundo do Brasil pra tretar – e valendo um PlayStation 3.
(Conste aqui que torneio valendo um videogame novo era algo bem raro na época)
Aí já sabe: no meio dos rolês e corres da internet, falei pra um pessoal que podia dar carona para eles porque — por coincidência — também estaria no aeroporto quando chegassem. E aqui estamos nós.
Pela porta de desembarque, saíram os três jovens integrantes de uma equipe profissional de videogames prontos para levar o título ali de Curitiba.
Se eles levaram mesmo? Bom...
O Trio
ChuChu, Saka e Kaká eram da CNB, uma organização com jogadores profissionais em vários jogos. E um destes investimentos estava em uma das maiores séries de luta: Street Fighter.
"ChuChu" era o apelido de Eric Moreira. Chegou com uma blusa vermelha cobrindo quase o corpo inteiro e tinha cara de molecão. Não era à toa: sempre foi um dos mais novos de toda a comunidade e ainda tinha seus 15 anos. O nome veio da habilidade com a Chun-Li, uma das personagens menos usadas na época, e por isso a brincadeira pegou. Principalmente depois de dar umas bicudas virtuais em vários jogadores na região de São Paulo. Outra marca registrada que mantém até hoje é a cabeça raspada.
Saka tinha seus trejeitos japoneses, mas beirava uma simpatia caipira entre asiáticos e brasileiros. Tudo isso se mostrava pelo chapéu que usava, como se estivesse em um safari nas planícies africanas. Vez ou outra o acessório estava na cabeça, cobrindo os cabelos morenos e curtos, mas por vezes ficava pendurado no pescoço logo atrás da camiseta da sua equipe. "Adson Okubo" era o nome nas formalidades — este também era um dos melhores do Brasil, mas vindo de São Bernardo do Campo.
Kaká, ao lado dos dois, era sem dúvidas o mais alto. Falava sempre no tom de uma boa brincadeira entre amigos, exatamente como fazia nos debates virtuais. Normalmente andava por aí sem óculos, preferindo colocá-los quando a treta começava. Para mim, "Kaká" sempre foi o nome, mas eu descobri anos depois que se chamava Fabrício Galvão mesmo, e mais um representante de São Bernardo, mas não tão velho como Saka.
As primeiras interações com alguém que você conhece só pela internet são meio estranhas. Vocês se conhecem e tal, mas não é como se vivessem há tempos na mesma cidade. Leva um tempo até o cérebro guardar na cabeça quem é aquela figura e entender que é um velho amigo. E eu não era necessariamente um poço de simpatia, mas soltei aquele "e aí" da boa amizade e puxei papo. Perguntei como foi a viagem, apresentei eles pra minha mãe. E ela puxou o bonde de volta pra cidade.
A viagem do Aeroporto Internacional de Curitiba até o centro da cidade nem sempre é recheada por conversas, afinal curitibanos honram a fama de cultivadores do silêncio. Mas os convidados passaram a maior parte do tempo conversando entre si no banco de trás.
"Não sei porque eu tô zoado", reclamou Saka com a voz beirando aqueles dias de molho na cama. São Paulo, como constatei anos depois, nunca fazia frio a ponto de deixar alguém tão gripado. Mas, por algum motivo, ele estava. O sol batia no talo até mesmo em Curitiba e o calor derretia em toda a cidade. Mesmo assim, ele garantiu que isso era normal, e que o destino fazia algo bizarro assim de vez em quando.
A viagem até que foi tranquila — muito embora minha mãe tenha, distraída, furado o sinal como eu nunca vi fazer na minha vida. As coisas verdadeiramente estranhas estavam realmente para acontecer, e eu estava ali pra presenciar.
O local do campeonato era uma loja de games muito perto da minha casa – muito perto mesmo, questão de umas duas quadras. Mas, provavelmente por se esconder facilmente entre as árvores e construções brancas por todo o canto da rua, que nunca vi a tinha visto antes.
Uma rua povoada por sombras levava o pessoal diretamente a uma das praças temáticas de Curitiba, a Praça da Espanha, que exibia seu chafariz e banquinhos de descanso a qualquer um que passasse. Ao redor, restaurantes e sorveterias se espalhavam na região, buscando ficar com parte do dinheiro das famílias, amigos, namoradinhos e competidores de videogame que iam passear ocasionalmente na região.
Se você a visse de frente, a loja parecia bem pequena. Uma rampa separava a calçada da entrada e, ao lado esquerdo, um pequeno estacionamento de dois carros povoava a parte frontal. Depois de algumas horas, ambos seriam oásis para aqueles que buscavam um pouco de ar puro em meio ao caos.
De onde eu vinha, lojas de games ficavam em corredores escuros em que você falava o videogame que tinha e o cara no balcão entregava um livro com pedaços de papel mal impressos e recortados. Escolhendo um, ele te dava uma capinha com um CD dentro, e era isso aí. Claramente tudo dali quebrava na primeiro escorregão, mas era o que dava.
Mas ali, o esquema bem era diferente. Seis estantes no lado direito da parede estavam entupidas de jogos de todos os consoles da época: PlayStation 3, Xbox 360, Nintendo Wii, PlayStation 2, tudo original e indo desde os sucessos que estavam nas capas de revistas de games até jogos que você sequer imaginava que existiam.
Pequenos móveis de madeira branca em formato de "H" estavam distribuídos no meio da loja. Alguns deles traziam acessórios, em outros mais jogos para a salivação geral.
Mas era no lado esquerdo que a festa de fato acontecia.
A porrada rolava solta em três cabines de vidro que separavam os competidores e o juiz — sim, tinha até um juiz — da loucura lá de fora. Parecia a evolução tecnológica e gourmet de uma locadora de games.
Vale aqui outra observação, especialmente para quem não viveu esta época: algumas daquelas lojas de fundão também tinham vários videogames para a galera alugar por uns reais a hora. Dava pra sentar naquela cadeira de plástico amarela com a propaganda de cerveja nas costas e jogar tudo o que você imaginava. O cara marcava sua hora e programava a TV pra desligar quando o tempo acabasse. E era essa a diversão da galera.
Bom voltemos pra treta. Em dias normais, o pessoal podia chegar nessa loja e alugar o espaço pra jogar algum lançamento naquelas tevês enormes ou bater uma jogatina com os acessórios mais caros daquela época. Como jogar Guitar Hero com guitarras coloridas e novinhas. Ou fingir que você tinha uma banda com seus amigos e jogar um Rockband com direito a microfone e até a uma bateria especial de videogame.
Mas o que a loja não largava mão era das cadeiras de plásticos, é claro. E fiquem com esse fato na mente. Mais pra frente ele será importante.
Tudo ali se ajeitava para o torneio. Televisões na parte de cima mostravam a longa tabela dos campeonatos com mais de 80 inscritos, enquanto outros monitores pela loja já rodavam a transsmisão ao vivo que aconteceria pela internet.
Quatro campeonatos eram planejados nos dois dias de evento: Super Street Fighter 2 Turbo HD Remix, Mortal Kombat 9, Marvel vs. Capcom 3 e Super Street Fighter IV: Arcade Edition. Cada um com o seu jeito próprio pro pessoal macetar botões.
Acabei me inscrevendo em dois: Mortal Kombat e Street Fighter. E treinava com certa frequência no últimos dias, mesmo já participando da CNB nessa época em outra divisão: a de DotA.
Mas essa é outra história. Aqui foi só um desastre mesmo.
Treta no aquário
As primeiras horas foram passando e, aos poucos, a loja foi enchendo de jovens de mochila nas costas em todos os cantos possíveis. De dentro pra fora. Cada um rodando o lugar do seu jeito descontraído, olhando games e monitores na esperança que seu jogo fosse o próximo.
Toda a estrutura da loja era planejada pra duas ou três pessoas passearem ao som do clássico "só estou olhando mesmo". Mas ela não aguentava uma torcida organizada e ensandecida pelo mais forte. A todo momento você tinha que se espremer entre as rodinhas de conversa que se formavam, ou procurar por uma visão privilegiada de alguma partida do aquário.
Bom, eu (ainda) não conhecia muita gente ali. Passeava pelos cantos olhando as primeiras partidas acontecerem. Muitos entravam nos aquários carregando seus próprios controles customizados — aparelhos que pareciam fatiados de uma máquina de fliperama por aí.
Esse é um dos costumes dessa galera. A maior parte gosta de jogar esses games de luta em controles "arcade", uma verdadeira herança da época de ouro dos fliperamas em que cada troco de pão era um novo desafiante na máquina.
Alguns desses acessórios são feitos por marcas conhecidas do mercado, como Madcatz, mas os mais incríveis mesmo são os caseiros. Eles são feitos por jogadores da própria comunidade e trazem as imagens e formas mais bizarras.
Já vi caixas de sapatos se transformarem nisso daí com fios e mais fios na parte de dentro conectando um manche e oito botões. E, pra coroar, tem gente que cola a imagem do seu boneco favorito na parte de cima pra deixar tudo mais bonito. Tá feito o seu próprio controle arcade.
Também já vi gente jogar com um trambolho que parecia mais uma mesinha de cabeceira deitada e com um elástico segurando um cotonete gigante. Não estou falando daquele cotonete que você enfia no ouvido, mas é o nome popular daquele manche detonado que fica em qualquer fliperama de boteco.
... Mano, você não tem noção.
Tudo isso é autorizado pelas autoridades competentes. A única restrição é de não ativar função "turbo", que é quando o controle fica "farofando" sem parar um botão sem que fazer qualquer esforço físico.
"Farofar", aliás, é um termo muito comum nesse ambiente, e refere-se àquele típico ser que aperta tudo o que puder na esperança de algo dar certo. O resultado visual disso é alguém ralando os dedos no controle até transformar tudo em farofa.
Em termos mais simples, farofar significa que tá jogando na louca. E, muito provavelmente, você já foi um grande farofeiro e não sabia disso até agora.
"Pagar uma Coca" também é uma regra por lá. Tomou um "perfect"? Agora tá devendo uma Coca-Cola (de vidro ou de lata) para o cara do seu lado.
A ideia não te obriga a ir lá no caixa e comprar isso pra ele, pelo contrário — é incentivar o jogador a não deixar o adversário te matar sem que ele perca um pouco de vida. Afinal, alguém vencer ileso é zoação demais com você.
Não fique devendo uma Coca pro seu oponente.
Ir até um campeonato de games desse tipo é diferente de assistir tudo pela internet. É como ver futebol diretamente em um estádio: você está ali com os jogadores, sente o drama deles, vê eles tremendo e suando a cada jogada.
Tem outra coisa diferente nesses torneios. Algo como... uma aura de euforia. Parece que o tempo passa mais devagar e você entende melhor cada uma das jogadas na sua frente. Como se fosse uma ligação mental com o jogo na telinha a ponto de você sentir o peso de cada decisão. É meio louco de explicar.
Mas foi ali que eu comecei a perceber isso. Desde o meu primeiro jogo. Já estava de prontidão quando me chamaram e também sabia que meu adversário era o Gustavo Tchen, da cidade de Londrina.
"Quem que eu vou jogar?", o rapaz de quase uns 30 anos perguntou do lado de fora do vidro. Levantei a mão. "Ah, é você".
(Por coincidência, eu já estava do lado dele)
Ele provavelmente se perguntou se tinha me visto em algum lugar antes. Com certeza não, mas eu já sabia que era dono de um dos melhores Balrogs do Brasil.
E, pra piorar, era o campeão do primeiro Treta.
A hora da verdade
Você acha que tá pronto pra jogar seu primeiro campeonato até sentar e jogar o seu primeiro campeonato.
É aí que você descobre que, por mais que treine e estude, é aquele dois contra um. Você de um lado, o adversário do outro — e entre os dois está o seu medo de fazer uma cagada enorme com os botões que aperta. Já joguei muitos campeonatos na vida, alguns deles de luta, mas todos eles compartilham da facilidade com que sua cabeça simplesmente derrete diante de uma partida séria.
E tudo começa já na primeira troca de socos.
Você acha que o pulo tá seguro ali, mas o oponente tava com o botão na mão e te contra-atacou no ar. Te botou no chão e agora ele tem a vantagem. Daí ele te agarra, e você não previu isso. Te jogou no chão de volta. Logo depois, te acertou por cima — e você também não previu.
Mais um combo, mais um pedaço da sua vida indo embora. De volta pro chão. Mais um agarrão. Ele tentou te agarrar pela terceira vez, mas finalmente você estava pronto. Puts, mas aquele soquinho em falso rendeu mais um combo pra ele. E assim você perdeu a primeira rodada.
Essa é a glória e a desgraça do "mind game": Ler, prever e se adaptar para um adversário é uma das coisas mais profundas em um game — e em jogos de luta isso é fundamental.
Em questão de segundos, você precisa entrar na cabeça do seu oponente e imaginar como ele está querendo atacar e defender. É lindo quando você prevê aquela farofada do seu oponente, vai por mim.
Neste caso, também não ajudou em nada escolher um dos bonecos mais difíceis do jogo. Crimson Viper tem voadoras de fogo pela tela e pode atacar a longa distância com uns terremotos sinistros, mas a maior parte dos golpes requer comandos exaustivamente treinados e milimétricos para serem rápidos, dolorosos e, mais importante, menos vulneráveis.
Obviamente, depois dessa primeira rodada eu já errei tudo na sequência. Nada mais funcionava. Os dedos falhavam quando algum combo entrava.
Tentei aplicar a Rose na segunda partida, uma personagem mais simples e com menos opções em seu leque. Era sensacional ver como um Balrog de nível, mesmo sem contar com nenhum tipo de projétil ou magia, conseguia se aproximar com calma e rapidez. Deu pra acertar alguns combos aqui e ali, mas a barra de vida dele sequer descia em menos de 70%. As brechas eram poucas a ponto de jogadores experientes sempre saberem qual é a distância, o botão e o tempo certo de cada golpe.
Eles sabem isso em "frames" — o número de imagens criadas no jogo em um segundo — e os jogadores mais teóricos estudam essas informações em tabelas monstruosas com os dados de cada um dos movimentos dos personagens. Alguns mais malucos discutem isso nos fóruns e treinam sem parar esses golpes dentro do jogo. Tem estudo ali no meio, sim. Muito estudo..
Outros, por outro lado, vão mais pelo instinto. Eles não sabem que tal golpe pune o outro até apanhar várias vezes durante a vida e finalmente descobrir o botão das maravilhas.
No meu caso, o soco fraco abaixado do Balrog tem dois frames. Em um segundo, ele leva 2/60 desse tempo para ativar o golpe. Mano, isso é muito rápido. É um dos golpes mais irritantes do game — e ele aproveitou o fato que eu não soube lidar com isso a curta distância.
A partir daí vinha aquela sequência deliciosa de três soquinhos no chão e uma cabeçada que te jogava lá longe da tela. E o Balrog já vinha cruzando a tela pistolaço antes do meu boneco levantar. Uma repetição de horrores que só mudou o ponto que achei que podia bater nele.
Narrar uma partida de game de luta é complicado, ainda mais em texto. O que me ajudou aqui é que eu fui destruído, aí fica fácil né. Aliás, o resto do torneio da vítima que aqui escreve nem vale o seu tempo. Perdi de tudo quanto é forma e só ganhei um round no Mortal Kombat.
Vamos para a história que interessa.
Cadeiras quebradas
Os caras quebraram três cadeiras de plástico durante o evento todo. E não foi na vontade de descer alguém na porrada, foi só sentando mesmo.
Uma delas despencou com tudo na final do campeonato. Em plena transmissão ao vivo. Deu pra ouvir os gritos de "AAAAAI" ultrapassando as barreiras do vidro enquanto o pessoal se amontoava ansioso para conferir a decisão de Street Fighter.
"Quebrei mais uma", riu um dos comentaristas enquanto a transmissão trocava a câmera pro pessoal da internet ver a desgraça. Guilherme Sarda se levantou dos escombros desse desastre com o rosto levemente ruivo tal como o seu cabelo. "Mais uma cadeira quebrada aqui no Treta."
Aliás, dá pra você ver esse acontecimento no comecinho desse vídeo.
A confusão se desfez enquanto os dois finalistas sentavam pra jogar a final. Provavelmente ambos duvidavam do estado das cadeiras em que sentavam, mas havia chegado o momento do tudo ou nada.
De um lado, Kaká. Ele fez uma caminhada sensacional pelo torneio passando por Saka, ChuChu e vencendo o próprio Sarda em uma partida que foi decidida na última gota de sangue possível.
Seu oponente? Ah, mas era o mais improvável possível.
Ratex era de São Bernardo do Campo, tal como Kaká e Saka. Sua presença era quase um alívio cômico pra todo mundo ao redor: aliás, o apelido provava isso e veio da sua semelhança com um ratinho. Também não largava o boné cobrindo o cabelo moreno e sua voz era mais arrastada que o normal.
Mas todas as ações de Danilo Ribeiro beiravam entre o inesperado e o engraçado. Pra começo de conversa, Ratex chegou até ali sendo que nem ele esperava ir tão longe. Ele só queria estar entre os oito melhores... e o consagrado chegou até a final. Tirou uma força de vontade dos cumes distantes de São Paulo e emplacou todo o treino que fez com os ermitões da CNB.
Foi algo único de se ver.
Não foi sem emoção, aliás. Lutou contra o Luvinha pertinho da final e chegou a levantar da cadeira nos últimos segundos dessa briga. O coitado achou que a partida estava acabada depois de tomar um golpe poderoso do oponente na loucura — uma das marcas registradas de Luvinha.
Ratex chorou e socou a perna com ódio nesse momento, mas as glórias da luta de rua ainda reservaram um pouquinho de sangue. Voltou pra cadeira na velocidade da luz e ainda venceu.
Foi sorrindo para a final. Ele jogava com Adon, um dos personagens especializados em Muay Thai dentro do elenco. Do outro lado, Kaká trazia Guy, uma espécie de ninja bem calmo e calculista. Enquanto o primeiro voava por todo lado e controlava o espaço com chutes que cruzavam a tela, o outro apostava em golpes certeiros de perto — mas sempre rápidos e capazes de pressionar muito o oponente se ele caísse no chão.
A briga foi boa. Ambos estavam explodindo aos mil nervos ali no aquário. Seus comandos refletindo os erros na tela: combos que não eram finalizados e golpes que entravam de forma estranha. Os dois se
conheciam muito a ponto de enganar um ao outro. Se duvidar, enganavam até a enganação entre eles.
Trocando vitórias, a série foi se tornando menos torta por erros e mais acirrada por punições. Até a última rodada.
Kaká ensaiou aquela virada quando faltava um só golpe para Ratex vencer o torneio. É assim com qualquer jogador quando falta pouca vida pra vencer: no início, você tenta se acalmar e pensa na vantagem. "Pô, tem a vida inteira ainda né, relaxa irmão". Aí você defende, mas entra um golpe. "Calma, brother". E depois um agarrão aéreo. "Pera aí, resp..." E depois outro agarrão. "Ôôôô cacilda".
É aí que percebe que cada batucada de Guy quase fechou a música da viradinha. Ratex, enquanto isso, voava na tela pra fugir enquanto buscava aquele golpe milagroso que não entrava.
Você confia em si mesmo até a barra de vida descer ao ponto do seu eu interior entrar na capela de oração mental e pedir "boneco amado me ajuda a acertar um golpe pelo amor de Ryu".
E se você não se controlar, é nesses momentos que a cabeça entorta de vez.
Por sorte, Ratex confiou sua fé nas palavras dos sábios ocultos dos fliperamas. De tempos em tempos, essas figuras se materializavam no meio da sua jogatina e pregavam o ensinamento que dá sempre pra confiar naquela farofada.
Ratex não se emocionou na hora que ganhou. Ficou um tempo quase imóvel, como se precisasse salvar o progresso no Memory Card antes que alguém chutasse o PlayStation. A ficha só caiu alguns segundos depois, quando deu um abraço forte em Kaká e saiu da sala de vidro. Sorriu pra todos ao redor e entrou na zoeira com todo o pessoal que também não acreditava muito no que tava acontecendo.
"Que que foi isso, Ratex?" era o que pairava entre os comentários lançados ao acaso no ar quente da loja. O clima beirando quele murmúrio caloroso da sessão que sai do cinema depois de um filme muito bom.
O ratinho que ninguém botava fé levou aquele campeonato. Chorou, gritou, sorriu muito até lá. Quando foi até a frente do balcão, levantou um PlayStation 3 novinho em folha. Ao lado, Kaká e Saka se curvavam de brincadeira diante do novo rei coroado entre os farofeiros.
O campeão mais inesperado do Street Fighter brasileiro.
Dias de glória
Só precisou de alguns minutos pro Ratex voltar ao que era antes.
Aliás, eu nunca vi uma entrevista como a dele.
O pessoal da CNB precisava gravar um vídeo de, sei lá, uns dois minutos com o garoto sobre a vitória dele no campeonato. Mas tudo levou mais de uma hora. Sessenta minutos rindo de como o próprio Ratex tavaemocionado a ponto de não formular alguma frase entendível para o vídeo.
"Estamos aqui aqui agora com o Dan... —ah gente, vai se foder."
Quando Ratex finalmente conseguiu se ajeitar nas palavras, nem o Kaká se aguentava mais. Todos riam porque algum maldito começava a rir dentro daquela sala.
Enrolamos ao ponto de zerar a bateria da câmera. Nada disso foi para o vídeo da CNB sobre o evento, o que foi mais hilário ainda. Acho que não viram nada que pudesse ser aproveitado mesmo.
Só lembro que, depois disso, nos despedimos e fomos embora. As luzes da loja se apagavam enquanto o pessoal de São Paulo se distanciava pelo outro lado da rua enquanto os postes eram os seus vigias. Eles iam até a casa de alguns amigos pra dormir até pegar o avião ou ônibus de volta na manhã seguinte. Eu levei poucos minutos pra chegar em casa.
Se você voltar até a primeira foto dessa matéria, verá um garoto loiro no fundão levantando a mão. A imagem foi registrada logo após a premiação e eu fiz questão de ir pra lá. Gritei de felicidade e estava muito feliz mesmo. Presenciei dois dias de porrada digital e aprendi coisas que levaria pra toda a minha vida.
Apesar de tudo, essa loja aí não existe mais. Deu seu lugar pra um comércio de vestidos de noiva, roupas e decorações, algo assim. Trocou as tretas pelas festas. Mesmo assim, fico imaginando se mais alguma cadeira quebrou lá dentro desde a nossa foto.
Obrigado Gabriel Sotobello, Guilherme Sarda, Eric "Chuchu" Moreira e todos os integrantes do Treta pelas fotos, vídeos e memórias.