A MEMÓRIA DO FRACASSO

Mais do que uma crítica ao capitalismo selvagem norte-americano, mais do que a derrocada de um sonho oferecido após a Segunda Grande Guerra, mais do que decadência de uma família de classe média. Tudo é ‘mais’ neste viver de menos...

A morte de um caixeiro viajante, em montagem obrigatória no Sesc Vila Mariana, nos conta como funciona o psiquismo humano na recusa em assumir um fracasso existencial. É nisto que se revela um texto clássico.

Willy Loman (Marco Nanini, um tanto jovem para o papel) é um funcionário típico de grande empresa capitalista já em fim de carreira. Cansado e desapontado com os rumos de sua vida não consegue parar de sonhar com um sucesso que não acontecerá. Como a maioria dos cidadãos de classe média, ainda encontra tempo para acreditar em receitas para chegar ao topo. Loman nada aprendeu da lição do pragmatismo americano. Não se corrige com os próprios erros. Pior talvez, ao se perceber incapaz de se realizar tenta pateticamente fazê-lo através dos filhos.

Passado e presente

Para sustentar o colapso iminente do protagonista o autor Arthur Miller transporta o texto para uma fina interação entre passado e presente, entre sonho e realidade. A memória, aqui, aparece para atormentar e não para servir à organização do pensamento.

Nossa memória serve para a atualização de projetos, de revisões críticas. Depósito de impressões e afetos, somos assaltados por recordações que nunca aparecem de forma aleatória. Para o filósofo Henri Bérgson, o cérebro complica, a percepção escolhe e a memória dá liga. A invasão de traços reconhecidos do passado tem sempre uma finalidade. Pode ser de organização do presente ou de projetos para o futuro.

Percepção e memória acontecem ao mesmo tempo. A percepção é recriada e transformada pela memória, julgada e dirigida pela intenção, isto se aplica a Loman. Arthur Miller diz que, em A morte de um caixeiro viajante, interessa-lhe como funciona a cabeça de um homem. Como trabalha a mente de Willy Loman?

Uma invasão de recordações

Miller concebeu a ação da peça paralelamente às lembranças do protagonista. Mesmo quando não está em cena, os acontecimentos servem para ratificar sua trajetória de vida fracassada. Ao intuir seu fim, Loman é invadido por recordações que lhe indicam o insucesso, mas ele não consegue ou não quer perceber isto.

O diretor Felipe Hirsch diz estar preocupado com a questão da memória em suas encenações. Assim, A morte de um caixeiro viajante cai como uma luva. O cenário de inspiração expressionista de Daniela Thomas acentua o tênue limite entre passado e presente, entre memória e realidade. Hirsch como em peças anteriores (A vida é cheia de som e fúria, A memória da água) utiliza a projeção em tela para falar de sentimentos. Aqui é o sufoco de uma moradia decadente, encravada entre modernas construções.

O texto é fascinante, pois o espectador é atingido pelas mesmas percepções de Loman. Ao assistirmos à encenação, vamos muito mais adiante do que o pobre homem consegue, conhecemos o que ele se recusa a reconhecer, pois logo concluímos que nenhum sonho mais é possível. Sua existência em constantes idas e vindas é condensada entre passado e presente, aos poucos justificando o nome da peça. Entretanto a encenação só toma ritmo na segunda parte, após o intervalo. Até então não fica clara a separação entre pensamento e ação, entre recordação e o presente.

Realidade cega

A memória tem como função principal a evocação de percepções passadas semelhantes às do presente. Representa um objeto ausente, condensa momentos. O que realmente importa é recordar para seguir da maneira mais útil possível, preparando uma ação seletiva.

O texto ressalta o quanto Willy Loman não enxerga a realidade. Talvez não queira e não possa. Ele não completa o processamento das informações que seu próprio cérebro lhe oferece. Talvez esteja em início um processo demencial, a senilidade. O espectador se pergunta: o que Loman está dizendo a si mesmo? Incapaz de responder a esta pergunta, vai assim insistindo em argumentação que não convence.

Seu estilo de vida deixa descendente: o filho de irônico nome Happy (vivido pelo excelente Gabriel Braga Nunes), a quem a vida não parece revelar alegrias também aprende a viver de sonhos impossíveis: ficar rico sem trabalhar, conquistar todas as mulheres... Nem percebe que já é dependente de álcool.

Fracasso denunciado

Há três personagens que tentam inutilmente indicar a Loman que sua carreira terminou em fracasso: o chefe, que, em duro diálogo, acaba despedindo o caixeiro viajante, o melhor amigo Charley (Francisco Milani, o melhor do elenco) e o filho Biff (Guilherme Weber, defendendo com garra o papel do segundo filho que percebe o desmoronamento da família).

A mãe, Linda (Juliana Carneiro da Cunha de volta ao Brasil) ampara e afaga a todos. Quer ter a família próxima, nem que seja para manter a atmosfera de uma patética união inexistente. Ela percebe o desmoronar do marido, mas, mesmo assim, compactua com uma realidade forjada. É dela a cena mais angustiante, a conclusão melancólica, o acenar vazio ao futuro perdido e a amarga percepção de que sabia o que aconteceria, mas também sabia de sua impotência para evitar a inevitável conclusão. Chora ela e choramos todos.

Loman é personagem já clássico em pouco mais de cinqüenta anos de existência. A morte de um caixeiro viajante choca porque é absolutamente atual. A transmissão genética do fracasso é poderosa e letal. O sonho pode ser facilmente confundido com realidade quando não interessa acordar. O fato de vivermos próximos a pessoas de sucesso não nos garante nada.

Loman tenta convencer à família, amigos e espectador que ainda dará certo, mesmo se arrastando em palco. Seu estilo de vida pode ser reconhecido por todos. Quem não conhece ou tem um Willy Loman na família? Quanto teremos que nos esforçar para, próximos a morte, olharmos com satisfação o que fizemos conosco na aventura do existir?

A Morte de um Caixeiro Viajante
Até domingo, 26 de outubro - Quinta a sábado - 20h30/ Domingo - 17h
SESC Vila Mariana - rua Pelotas, 141 - tel.: 11 5080-3000





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