Um rio chamado tempo, uma casa chama terra
Mia Couto
(Companhia das Letras)

Via Atlântica
Vários (FFLCH USP)

Abomino, na mesma intensidade, anglicismos e purismos lingüísticos exagerados. Do mesmo jeito que soa ridículo dizer printar o documento com o target para o nosso staff meeting, é cômico ouvir alguém indicar o seu sítio na rede mundial. Mas concordo com aqueles que dizem que certas palavras são intraduzíveis, são exclusivas desse ou daquele idioma. É heresia, por exemplo, dizer "saudade" em outra língua que não o português.

Tudo isso pra chegar na minha palavra intraduzível favorita em inglês: underdog. São aquelas pessoas ou grupos com menos poder, menos voz, menos dinheiro que o resto da sociedade. Eu adoro os underdogs. Vai dizer que você não? Vai negar que quando não é o seu time de um lado do campo, você não torce pra Portuguesa? Ou que você nunca simpatizou com o Enéas? Ou que você nunca sentiu uma dorzinha no coração quando leu uma matéria sobre os atrasados no dia da Fuvest (sempre tem um!)?

E como vocês já devem ter percebidos, a coluna desse mês é sobre escritores underdogs. Autores que têm de se esforçar em dobro já que o país em que nasceram não tem lá muita tradição literária. Mas talvez seja justamente esse desafio extra que torna suas obras tão espetaculares. Fiz uma bela e longa lista sobre meus underdogs preferidos no mundo das letras. Entretanto, tentarei ser uma menina obediente e aceitar a sugestão dos chef(e)s do Omelete e escrever uma coluna mais concisa... Assim, delimitei minha seleção a apenas um continente e um país dentro dele. Ah, já é uma seleção, vai! Abram alas para dois admiráveis autores moçambicanos.

Acredito que muita gente não conheça a fundo a literatura africana - eu pelo menos faço parte desse grupo. Assim, resolvi começar por um dos escritores mais famosos do continente. E digo começar porque em colunas futuras podemos falar de autores africanos ainda mais underdogs :) Ainda mais agora com lista dos finalistas ao prêmio Caine for African Writing para nos servir de guia.

Engasgado em nuvens

Quantas vezes por mês ou por ano você troca o seu livro de cabeceira? Eu faço isso com uma certa parcimônia, sou muita apegada a meus livros mais queridos... Esse mês, entretanto, aconteceu. E tudo por causa de um moçambicano chamado Mia Couto. Quer dizer, seu nome é António Emílio, mas quando criança, seu irmãozinho só conseguia dizer Mia. E ele pouco se importava porque na época seu maior sonho era ser um gato.

Biólogo-jornalista-escritor (não necessariamente nessa ordem), Mia é o autor de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, livro de 2002 que no momento figura no topo da minha lista de favoritos. A saber, essa beleza enigmática do título perpassa toda história, cujo protagonista é o estudante universitário Marianinho. Depois de muito tempo fora de sua terra natal, ele volta para a ilha de Luar-do-Chão para comandar as cerimônias que envolvem o enterro do avô.

Mas as incumbêmcias do neto preferido de Dito Mariano passam longe de tarefas como ligar para o cemitério ou organizar o funeral. É preciso lembrar que se está na África, onde os ritos se misturam com o cotidiano e morrer é uma passagem importante e fundamental. "A morte é como umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência", reflete Marianinho ao pisar na sua saudosa ilha, e completa: "A cicatriz tão longe de uma ferida tão dentro: a ausente permanência de quem morreu. No Avô Mariano confirmo: morto amado nunca mais pára de morrer".

Marianinho vai, aos poucos, descobrindo seu papel naquela ilha, enquanto lhes são revelados os segredos por trás da morte. "Tio? O Avô está morrendo ou já morreu?" "É a mesma coisa." Ao mesmo tempo, nós, leitores, vamos nos acostumando (e nos encantando) com a linguagem de Mia Couto, com sabor de Guimarães Rosa e aroma do realismo mágico latino-americano, mas totalmente original. É o Tio que está quieto, afivelado em si; a tristeza que aduba a casa; a cozinha onde se recebe os temperos do crescer; a morte que é um engasgar em nuvem...

O jovem moçambicano logo entende que é preciso salvar não apenas a alma de seu avô, mas também a sua terra, cujo significado remete à memória da família, da própria ilha e até de uma identidade africana. As lições sobre tais temas vêm em forma de cartas misteriosas e conversas com os mais vividos. O aprendizado, entretanto, serve não apenas a Marianinho, mas também a seus leitores, como quando lhe é dito que "o amor nos pune de modo tão brando que acreditamos estar sendo acariciados". Assim, a cada virar de página, vai prosperando o orgulho de se expressar em português, seja o daqui ou o do além-mar, e o privilégio de ter algumas das mais belas palavras intraduzíveis, a saudade - que nas versadas palavras de Dito Mariano é "uma ferrugem, raspa-se e por baixo, onde acreditávamos limpar, estamos semeando nova ferrugem." ;)

"Escrever poemas, o meu refúgio, o meu País"

Com a frase acima o poeta maior de Moçambique descrevia seu ofício. José Craveirinha (1922 - 2003) era filho de pai português com mãe africana, e é essa mestiçagem que marca toda a sua obra. Durante sua infância e juventude, em Maputo (capital de Moçambique), alternou períodos vivendo na periferia - onde falava ronda e estava mais perto da cultura africana - com outros mais no centro da cidade, onde foi obrigado a aprender o português. Mesmo assim, nunca houve uma ruptura total de uma ou outra cultura, as duas ficaram marcadas em sua personalidade.

Porém, um belo dia ele percebeu que havia feito uma escolha em relação à sua ascendência. E revelou essa sua opção (consciente ou não) em uma espécie de testamento ao contrário para seu pai, em um dos mais belos poemos que já li. Reproduzo aqui alguns trechos:

Ao meu belo pai ex-imigrante

Pai:
As maternas palavras vivem e revivem
no meu sangue
e pacientes esperam ainda a época de colheita
enquanto soltas já são as tuas
sementes naturais de emigrante português
espezinhadas no passo de marcha
das patrulhas de sovacos suando
as coronhas de pesadelo.







E na minha rude e grata sinceridade
não esqueço
meu falecido português puro
que geraste no ventre da tombasana ingénua
um novo Moçambique
semiclaro para não ser igual a um ariano qualquer
e seminegro para jamais renegar
um glóbulo que seja dos Zambezes do meu signo!






[...]

Oh, Pai
Juro que em mim ficaram laivos
Do luso-arábico Aljezur da tua infância
mas amar por amor só amo
e somente posso e devo amar
esta minha bela e única nação do Mundo
onde minha mãe nasceu e me gerou
E onde ibéricas heranças de fados e broas
se africanizaram para a eternidade nas minhas veias
o teu sangue se moçambicanizou nos torrões
da sepultura de velho emigrante numa cama de hospital
colono tão pobre como desembarcaste em África
meu belo Pai ex-português

Pai:
Ainda me lembro bem do teu olhar
E mais humano o tenho agora na lucidez da saudade
Ou teus versos de improviso em loas à vida escuto
E também lágrimas na demência dos silêncios
Em tuas pálpebras revejo nitidamente
Eu, Buck Jones no vaivem dos teus joelhos
Dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura
Na dimensão desmedida do meu amor por ti
Meu belo pai algarvio bem moçambicano!

[...]
























Pai:
Afinal tu e minha mãe não morreram ainda bem
mas sim os símbolos Texas Jack vencedor dos índios
o Tarzan agente disfarçado em África
e a Shirley Temple de sofisma nas covinhas da face
e eu também é que mudamos.
fantásticas aventuras do Rin-Tin-Tin
E alinhavadas palavras como se fossem versos
bandos de sécuas ávidos sangrando grãos de sol
no tropical silo de raivas eu deixo nesta canção
para ti, meu Pai, minha homenagem de caniços
agitados nas manhãs de bronze
chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias
almas esguias hastes espetadas nas margens das húmidas
ancas sinuosas dos rios
E nestes versos te escrevo, meu Pai
por enquanto escondidos teus póstumos projectos
mais belos no silêncio e mais fortes na espera
porque nascem e renascem do meu não cicatrizado
ronga-ibérico mas afro-puro coração
E fica a tua prematura a beleza realgarvia
quase revelada nesta carta elegia para ti
meu resgatado primeiro ex-português
número UM moçambicano!
(Karingana ua karingana. Lourenço Marques: Edição da Académica, 1974,
pp.90-93)
























Fiquei um pouco revoltada em perceber que passei tanto tempo da minha vida sem nunca nem ter ouvido falar de Craveirinha. Foi há apenas alguns meses que uma professora iluminda me apresentou sua história e seus poemas, presentes no número 5 da Revista Via Atlântica, publicada pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP.

Mesmo escrito em português, algumas passagens soam como outra língua. Na hora da leitura, sempre tenha em mente a oralidade do estilo de Craveirinha, e dos autores africanos em geral. Isso ajuda, mas há ainda outros mistérios... Por isso, reproduzo abaixo uma lista de traduções que me foi passada.

  • Tombasana: jovem na língua ronga
  • Zambebe: principal rio moçambicano
  • Michafutene: bairro onde Craveirinha nasceu
  • Leônidas: sim, é ele mesmo; os africanos acompanhavam de perto o futebol brasileiro.
  • Aljezur: cidade-natal do pai de Craveirinha
  • Xitututo: barulho do motor de uma moto
  • Sontinho: apelido do autor desde criança
  • Tingolé: espécie de marisco
  • Gala-galas: lagarto
  • Antero: escritor português que o pai do poeta gostava

Além de belo, o poema é longuíssimo. Assim, para não aborrecer os leitores menos interessados e evitar confusões com os os chef(e)s, só transcrevi trechos de "Ao meu belo pai ex-imigrante". Quem gostar e quiser lê-lo na íntegra - e conhecer outras poesias do autor-  é só clicar aqui (arquivo PDF).

Agora, como disse Craveirinha, vou terminar essa coluna e continuar minha luta incessante comigo próprio. Ah, e vale lembrar que emails com críticas e opiniões sobre a coluna (inclusive a respeito de sua extensão) são sempre mais que bem-vindos. Até o mês que vem!

Leia mais Bookends*

* Bookends = objeto usado, geralmente em pares, para manter uma fila de livros em pé, tudo organizadinho na estante :o)