Na melhor e na pior em
Paris e Londres

George Orwell
(Companhia das Letras)

Rádio Gerrilha - Rock e
Resistência em Belgrado


Matthew Collin
(Ed. Barracuda)

Ele costuma ganhar bem mais críticas que elogios. Já foi taxado de cruel, manipulador, vendido, inescrupoloso. E está acostumado até a levar a culpa por desgraças políticas, econômicas e culturais. Falam que muitos o praticam apenas to pay the mortgage, como se diz em Obrigado por Fumar. O cinema ora o endeusa (como em Todos os homens do presidente, 1976), ora o avacalha (A montanha dos sete abutres, 1951). Porém, por mais que o critiquem ninguém quer viver longe dele. Quem é proibido de conviver com ele, sente saudades, chega a lutar por seu retorno... Mas quem é esse vilão tão querido?

Para quem não matou a charada, abram alas para o homenageado dessa coluna, o jornalismo. Não importa se você o veja como culpado ou inocente, útil ou estorvo para a democracia, emburrecedor ou fonte de conhecimento. Dispa-se de seus preconceitos porque é hora de saudar duas obras que, cada uma a seu modo, são sinônimos de jornalismo do mais alto nível.

De um lado da coluna, George Orwell, autor cujos clássicos 1984 e A Revolução dos Bichos ofuscaram seu brilhante trabalho como jornalista literário, no melhor estilo gonzo, em Na Pior em Paris e Londres (Companhia das Letras). Do outro, Matthew Collin, jornalista inglês que retrata em Rádio Gerrilha - Rock e Resistência em Belgrado (Ed. Barracuda) a história de um rádio que provou que o jornalismo pode, sim, ajudar a salvar a pátria.

Antes de 1984

É um pouco difícil imaginar que alguém do talento de George Orwell tenha ficado boa parte de sua vida sem saber exatamente o que fazer com sua inteligência. Mas, acredite, aos 25 anos ele não fazia idéia. Então, resolveu ir viver em Paris. Aprender francês, conhecer uma nova cultura, trabalhar como escritor freelancer... Nada mal, uh? Acontece que as coisas não saíram muito bem como Orwell planejava. E, pensando agora, ainda bem! Porque se em Paris ele não tivesse comido o croissant que o diabo amassou, seu primeiro livro - Na Pior em Paris e Londres - não existiria.

Diversos infortúnios na capital francesa (como uma doença, calotes de editores e um roubo) forçaram o jovem Orwell a se mudar para um bairro parisiente miserável bastante característico, com bate-bocas e pregões desolados de vendedores ambulantes, a gritaria das crianças correndo atrás de cascas de laranja [...] e, à noite, a cantoria alta e o fedor ácido dos carros de lixo. Porém, ele logo descobriu que os bairros pobres de Paris são ponto de encontro de pessoas excêntricas.

Assim, sem dinheiro, sem moral, mas também sem preconceitos, o escritor vai conhecendo e nos apresentando seus vizinhos bizarros - e vai aprendendo na pele o que é a pobreza. Descobre que como miserável (e ele realmente chegou a esse ponto), basicamente dois pensamentos ocupam sua mente: a próxima refeição e a próxima mentira. Sim, porque você está passando fome, mas não ousa a admitir e se enreda numa teia de mentiras que mal consegue controlar.

Perto do fundo do poço, Orwell finalmente encontra um emprego como lavador de pratos em um porão abafado de um hotel. Quando o livro foi publicado, suas revelações sobre o submundo gastronômico e hoteleiro de Paris causaram furor. Na Pior em Paris e Londres teve sua autenticidade constestada por donos de hotéis e restaurantes de Paris, que, mesmo sem saber a que estabelecimentos Orwell se referia, acusaram-no de mentir sobre o estado geral das cozinhas parisienses, como explica Sérgio Augusto no posfácio da obra.

Em Paris, o autor nos relata suas intrigantes, e por vezes nojentas, opiniões do ponto de vista de um ajudante de cozinha (Ele [o chef] é um artista, mas sua arte não é a da limpeza. Até certo ponto, é sujo porque é um artista, pois sua comida, para parecer requintada, precisa de um tratamento sujo). Em Londres, ele cava a vida de mendigos, claro, juntando-se a eles em albergues, nas ruas, nas estradas, nas instituições de caridade... Em ambos os casos, o resultado são páginas com tintas que chocam e nos fazem pensar no que (não) mudou nessas décadas que nos separam de seu lançamento.

Mas sua genialidade faz com que sua análise da miséria vá além. E assim Orwell revela também suas lições no mundo da pobreza. Caso do consolo de estar na pior: É um sentimento de alívio, quase de prazer, de você saber que está, por fim, genuinamento na pior. Tantas vezes você falou sobre entrar pelo cano - e, bem, aqui está o cano, você entrou nele e é capaz de agüentar. Isso elimina um bocado de ansiedade.

Depois de 1989

E talvez seja esse mesmo sentimento que tenha feito o pessoal da rádio B92 a persistir para que a emissora continuasse no ar e para que ninguém desistisse do sonho de fazer com que a Sérvia saísse do buraco em que estava no início dos anos 90.

Aqui, acho que vale um parênteses - daqueles bem extensos - para relembrar um pouco da emaranhada trajetória iugoslava - certamente no top 10 dos temas mais intricados da História da humanidade. Para não voltarmos muito no túnel do tempo, vale lembrar que o marechal Tito mantinha unidas (na marra) as províncias da então Iugoslávia. Com a sua morte, em 1980, os sentimentos nacionalistas e separatistas começaram a aflorar. A partir de 92, Macedônia, Croácia, Eslovênia, Bósnia e Herzegovina e Kosovo se tornaram independentes.

Nesse meio tempo, Slobodan Miloševic - presidente da Sérvia (1989 a 1997) e depois da Iugoslávia (até 2000) - se destacava como a figura central das guerras na região, principalmente contra Kosovo. Não por acaso conhecido como o açougueiro dos Balcãs, ele morreu em março desse ano, em uma prisão em Haia, infelizmente antes de ser sentenciado por seus crimes de guerra e genocídio.

Fechando o parêntese e voltando ao Rádio Guerrilha... Como contar a história de uma rádio tendo um pano de fundo tão complicado sem tornar o livro maçante, cheio de datas e nomes complicados? Bem, eu não sei, mas Matthew Collin certamente sabe. Tarimbado jornalista inglês (já passou pela The Big Issue, i-D, Time Out, The Guardian, Mojo...), ele conheceu a B92 quando era correspondente da revista The Face em Belgrado, capital da Sérvia, em 1996.

Munido de muitas entrevistas, Collin traça com maestria a linha do tempo da B92, intrinsicamente ligada com a do próprio país. A emissora surge em 1989, quando a organização da juventude comunista funda uma emissora jovem por apenas duas semanas para comemorar o aniversário de Tito. E o seu nascimento já vem carregado de ironia, afinal eram os filhos descontentes de Tito criando uma organização dissidente em homenagem ao antigo mestre. Liderada por Veran Matic, um jornalista de trinta e poucos anos que não se encaixava na mídia tradicional, a equipe era formada por jornalistas novatos, estudantes obcecados por rocknroll, literatura ou arte [...] ávidos por novas sensações, que acreditavam poder transformar o mundo à sua volta. Mal sabiam eles que conseguiriam.

No ano seguinte, apesar de toda a agitação política e dos protestos, Miloševic vence as eleições (fraudadas) e coloca a Sérvia e principalmente seus jovens em choque. Seria difícil evitar um futuro deprimente. Belgrado não seria outra Praga nem Berlim nem Varsóvia. A porta aberta foi batida com estrondo. Assim, aumenta a rigidez no controle da mídia e, ao mesmo tempo, o papel de resistência cultural e política da B92. Em um episódio notável, quando os programas jornalísticos da emissora estavam sob censura, os DJs assumiram o papel político e tocaram músicas que descrevessem no som e nas letras que representavam a tensão nas ruas e a revolta dos servos. Em depoimentos coletados por Collin, ouvintes da rádio contaram que com o cerco a Belgrado, a B92 era o único contato com o mundo e funcionava como uma terapia, uma luz no fim do túnel.

A rádio nunca se contentou com apenas transmitir os acontecimentos. Em 1992, por exemplo, promoveu um ato no centro da cidade para, em plena guerra da Bósnia, tentar fazer a população pensar sobre as divisões étnicas da região. Outro exemplo: para protestar contra o aumento de impostos sobre produtos para bebês, a rádio convocou as mães a levar seus filhos à casa do presidente. Em entrevista ao autor, o chefe da rádio relembrou o acontecido. Todos os bebês choravam e achamos que era porque eles não queriam nem chegar perto de Miloševic. Mesmo com todo o humor, Collin deixa claro a importância dos protestos. Os impostos sobre os produtos para bebês, explica, foram revogados.

Apesar das chatas - porém por vezes necessárias - notas no fim do livro, as páginas de Matthew Collin ajudam a humanizar, com pitadas de humor negro e acidez, o conflito nos Bálcans. Mais que isso, ajudam a compreender o que de fato é não sucumbir ao pessimismo e ao desânimo, mesmo quando a tônica sérvia da época era: nosso passado é péssimo, nosso presente, terrível; ainda bem que não temos futuro.

*F*I*M*

Até a próxima!

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* Bookends = objeto usado, geralmente em pares, para manter uma fila de livros em pé, tudo organizadinho na estante :o)