[Terrorismo na ópera]

As apresentações da ópera Idomeneo, de Mozart, foram suspensas este ano em Berlim após ameaças terroristas de fundamentalistas muçulmanos via telefone. A suspeita é da encenação ousada que debocha de ícones religiosos, entre eles Maomé. Quem diria que uma arte dita elitista traria preocupação aos ignorantes? Talvez a ópera não seja assim tão elitista. Segundo John Guare, um dos mais importantes autores de teatro e cinema americano (Seis graus de separação), a ópera está muito mais acessível do que a Broadway. É raro conseguir nesta ingresso por menos de 100 dólares (em Manhattan), e as peças não musicais, que até pouco tempo tinham média de 60 dólares por lugar, também chegam ao patamar dos 100 dólares. Guare lembra que qualquer um consegue ir ao Metropolitan Opera House de New York, cujos ingressos começam em 16 dólares (para assistir de pé, é claro). Mais do que isto, lembra a experiência única da performance no teatro de ópera, que nunca consegue ser automatizada como os musicais para turistas. Guare, que dá aula na prestigiosa universidade de Yale, não se cansa de surpreender-se com seus alunos extasiados em apresentações operísticas que prometiam aborrecimento. Puro preconceito. Neste ano, a nova direção do Metropolitan Opera (Peter Gelb) ousou com megatelões em frente à Opera House, em transmissão simultânea, cadeiras confortáveis para a multidão e som fantástico, além de - pasmem - a mesma exibição em pleno Times Square. Planeja ainda fazer a mesma coisa em salas de cinema escolhidas em cidades dos Estados Unidos.

[A arte sobrevive ao homem?]

Richard Wagner talvez seja o mais perfeito exemplo de ame-ou-odeie da música clássica. Habitualmente a primeira audição é árida, mas quem for pego pelo ciclo do Anel do Nibelungo (qualquer semelhança com O senhor dos anéis não é mera coincidência), seja pela música, seja pelo aspecto teatral ou pelo enredo absolutamente ousado até para os dias de hoje, está frito. Vira doença e compulsão à peregrinação pelas poucas montagens anuais das 16 horas de encenação divididas em quatro dias. No ano passado, a montagem badalada foi no Festival de Manaus. Neste ano, as atenções se dirigiram para a inauguração do novo (e ótimo) teatro de ópera de Toronto. A magia foi a mesma da capital amazonense e a percepção de que a cidade passa a respirar a trágica decadência dos deuses e a solidão do ser humano em sua liberdade de escolhas não é mera subjetividade. No Amazonas, esbarrava-se a todo o momento, em plena selva, em um vizinho de poltrona do imponente teatro. Em Toronto, faixas espalhadas pela cidade e grandes matérias de jornais confirmavam a importância do evento. Wagner era anti-semita, mas sua ópera é financiada por judeus. Orquestras melhoram, cantores ultrapassam seus limites e o público delira com uma história que valoriza o incesto, o heroísmo e a busca da liberdade mesmo entre apaixonados.

[Comunidade sexualizada]

Toronto parece a cidade ideal para as extravagâncias wagnerianas. Conhecida por seu liberalismo quanto ao exercício da sexualidade, se transformou em cenário para Queer as folk (Os assumidos, série que terminou, mas é reprisada no Cinemax). Na série, Toronto fazia as vezes de Pittsburg, uma das cidades mais liberais do conservador Estados Unidos. O que aparecia na tela é o que vemos por lá. Gays andam de mãos dadas e se beijam nas ruas. Sem susto ou reprovação de ninguém, sem confinação em guetos, nem em casa noturnas. No Canadá, o casamento homossexual é permitido, embora a comunidade gay não esteja satisfeita. Os direitos ainda não são os mesmos. As publicações voltadas a este segmento são inúmeras e distribuídas gratuitamente por toda a cidade (lojas, farmácias, hotéis) e fogem do costumeiro mercado de carne. Toronto quer ser a capital gay mundial com o primeiro museu do tema, e merece os méritos. A maioria dos textos de jornais voltados aos homossexuais fala das questões do cotidiano, convivência com doenças (DST especialmente) e o receio do aumento dos casos de AIDS por burrice (palavra literal de um colunista): há muita confusão da moçada mais jovem que acredita não correr perigo em transar sem camisinha porque as medicações retrovirais, os famosos "coquetéis" trariam imunidade. Quem espalhou esta bobagem?

[Liberdade conservadora]

Alguns ativistas gays canadenses estão preocupados com a cultura do grupo - muito voltada ao consumo do sexo, das drogas. Recentemente, em sua lançada autobiografia, o ator assumido Rupert Everett fez barulho sobre sua atual condição no mercado cinematográfico. Meio choraminguento acha que ninguém dá bola a um gay após os 42 anos (porque esta idade?). Lamúrias à parte, o consumo pop parece que cada vez dá menos atenção aos adultos. A produção de séries para a televisão explode pela seriedade dos temas abordados ou pela ousadia desaparecida no cinema. Este está mais voltado aos efeitos especiais e ao filme evento, cuja celebridade dura o tempo que chegar à prateleira de ofertas da loja, geralmente pela metade do preço de uma entrada de cinema. Em Nova York, uma das maiores preocupações da polícia é a alta freqüência por menores de idade nas casas noturnas em que álcool e drogas rolam à toda. O desejo pode ser entendido como expressão das forças mais arcaicas, dele deve-se tirar partido, não buscar sua simples realização. A exposição em busca do gozo, a oferta sexual ou a alienação no prazer podem esconder a mais conservadora atitude: estou na mão do outro que vai me avaliar se me quer. Onde está a liberdade?

[A celebridade morta]

Em Toronto, a Art Gallery of Ontario organizou uma intrigante exposição de Andy Warhol: Supernova. Stars, deaths and disasters, 1962- 1964. A curadoria é do cineasta David Cronenberg. Perfeito! Ninguém melhor do que Cronenberg, obcecado pela morte, para traduzir a famosa frase de Warhol que traz confusão: no futuro, todos terão 15 minutos de fama. Depois desta mostra fica fácil entender: da fama para a morte. Para Warhol, a celebridade está morta para o público e - se não tomar cuidado - para si mesma. O aviso é claro. Devemos duvidar do que querem para nós e em que lugar somos colocados. Warhol acreditava que uma mesma fotografia pintada de cores diferentes traz diferentes emoções. Seus filmes experimentais parecem contemplativos, horas e horas mostrando e Empire State Building ou uma baladinha caseira com um roça-roça bem atrevido para a época - sexo grupal - ou um corte interminável de cabelo. Mas o olhar atento, segundo as indicações do artista, pode revelar a mutação. Warhol acredita que a celebridade está mumificada por aqueles que a elegeram; é realização de um desejo que mata. Mas ele acreditava na vida potencial, no alivio da diferença realçada pelo detalhe.

[Pó na prateleira]

O que fazer com as já saudosas mega-lojas do primeiro mundo? Se depender da juventude: morte! Tower Records, Virgin, HMV só atraem público jovem em eventos do tipo pocket shows ou encontros de autógrafos. Em era de downloads ou CDs mais baratos nas lojas virtuais, quem se interessa pelas prateleiras com os disquinhos? As novas televisões de alta definição a baixo custo, com equipamento de som acessível e compatível com as melhores salas de exibição exigem que para sair de casa só um estímulo diferente, que turbine a experiência acolhedora do sofá. Em Nova York é impossível sentar em qualquer das milhares de lojas Starbucks, a mais famosa rede de café do planeta. Por que estas estão cheias e as lojas, muito mais espaçosas, vazias? Fácil. Na Starbucks você pode passar o dia mesmo consumindo pouco. Se quiser entrar e sentar, ninguém incomoda. O ambiente é agradável, boa música, aquele delicioso aroma de café, rede wireless para laptop e poucos turistas. As lojas de CDs apostam em música ruidosa, nenhum lugar para sentar - a Tower Records tirou suas poltronas e substituiu por bancos duros porque as pessoas dormiam - e nenhum atrativo em comparação às home pages. São Paulo cada vez mais investe no conceito de loja=espaço de lazer. A Starbucks chega aqui via shopping, via megastore. Até a tradicional Livraria Cultura e a sempre inovadora Livraria da Vila apostam na busca do conhecimento pelo prazer em freqüentar espaços maiores, confortáveis, estimulantes e cada vez mais completos como programa. Será páreo para as livrarias virtuais?

[Movendo a carcaça]

Quando a realidade é amarga, o sonho desaparece. Para enfrentar a dura realidade do trânsito e violência é cada vez mais necessária a ousadia para continuar sonhando via arte. As locadoras de DVD estão apavoradas com as novas modalidades de aluguel de filme pela TV a cabo, que logo estarão por aqui. Nos Estados Unidos falta pouco para os filmes estrearem simultaneamente em sua casa. Se o comércio do entretenimento se preocupa em reinventar-se, o mesmo acontece com a arte. Na ópera, as produções são mais audaciosas, geralmente se associando às vanguardas da arte. Em Toronto, a encenação de O anel do nibelungo uniu artes plásticas com o genial encenador Michael Levine à frente e a direção das quatro noites privilegiando o aspecto teatral comedido. O mesmo Levine inventou uma Madame Butterfly para a abertura da temporada de ópera do Met/New York tirando atenção do drama excessivo que sublinha esta ópera. A direção do cineasta Anthony Minghella (O paciente inglês) introduziu danças japonesas e uma espantosa técnica com marionetes (Bunraku) inventadas em Osaka, no século 17. A beleza plástica, a capacidade de atuação dos grandes cantores - magros, jovens e bonitos -, a simplicidade dos cenários, o apoio na belíssima música e iluminação fazem que as apresentações atuais atraiam cada vez mais público. A experiência é única e não dá para repetir no CD, nem no DVD. Em compensação, a Broadway ainda insiste na transposição de filmes em forma de musicais esclerosados para os palcos e afastam os jovens. O que impede a repetição do sucesso de Rent, que até hoje - depois de dez anos de sua estréia - ainda traz a garotada romântica para as apresentações? Ou a ousadia de Chicago, que estreou no mesmo ano e não foi abafada pelo filme? E a ridícula adaptação do brilhante The Producers, do genial Mel Brooks? Conservadorismo e covardia andam juntos na indústria da diversão.

[Coragem na inovação]

No Metropolitan Museum of Art de New York a ousadia de um comerciante das artes fez a alegria em vida de alguns pintores impressionistas e o deleite do olhar de um público ávido de beleza. Cézanne to Picasso: Ambroise Vollard, Patron of the Avant-Garde mostra de forma didática - a exposição é dividida em várias salas, cada uma com obras de determinado artista - o investimento de Vollard, sem excluir a polêmica que rodeava o mais famoso marchand de todos os tempos. Antecipando a voracidade pelo novo que permeava a virada do século 19 para o 20, Ambroise Vollard apostou em exposições polêmicas para a época, em que imagens pouco definidas dos impressionistas e a exibição do nu chocavam. O mesmo Met Museum exibe vinte enormes fotografias estranhamente belas da cidade de New Orleans arrasada pelo Katrina. New Orleans after the flood traz os painéis de Robert Polidori, fotógrafo especializado em arquitetura, que conferiu as marcas da maior enchente americana. O que atrai nosso olhar para a catástrofe? Segundo Polidori, a contemplação do flagelo pode trazer uma beleza complacente e reconfortante.

[O pequeno ladrão e o crepúsculo dos deuses, sobram os homens]

Há adaptações em quadrinhos da grande épico Wagneriano, inclusive saiu no Brasil em preto e branco, sem o esplendor das cores da edição norte-americana. Difícil compreender e impossível explicar o fascínio que promove. Surpreendia no teatro o grande número de crianças em absoluto silêncio, mergulhadas em fascínio, estáticas ante o que se desenrolava no palco. E a pergunta resta: o que será que se passa?

Um anão feio, o nibelungo do título, sem atrativos rouba o ouro do rio Reno, responsável pelo equilíbrio de forças entre deuses, gigantes, os próprios nibelungos e os humanos. No mesmo momento, os deuses já sabem de sua destruição. Wotan, o deus maior, tenta gerar um herói, Siegfried que os defenda. Este é filho de dois filhos seus... que unir-se-á sexualmente à filha de Wotan - Brünnhilde - ou seja sua tia, numa última tentativa de preservar a ordem divina das coisas. Mas nada dá certo e os homens acabam sós, donos de seu destino, com a inexorável condenação à liberdade. É indescritível o efeito sobre todos nós.


"Favorece minha maldição à tua alegria?
Toma cuidado, deus prepotente!
Se eu transgredi, transgredi sozinho contra mim mesmo;
mas contra tudo: o que foi, é e será, transgrides tu, imortal,
se com tal arrogância tiras-me o anel!"




Alberich, o nibelungo,
cena IV de O Ouro do Reno, prólogo da Tetralogia.
Richard Wagner