O fã de RPGs japoneses é alguém que está acostumado a pedir desculpas por seus jogos favoritos.

“Sim, o sistema de combate é quinze vezes mais complicado do que precisa ser, os diálogos têm mais dramalhão que uma novela de época e todas as personagens mulheres vestem progressivamente menos roupas a cada novo capítulo, mas eu juro que você vai curtir se der uma chance,” dizem.

Xenoblade esteve nesta exata situação cinco anos atrás, quando uma crise de identidade pós-fracasso no Wii U fez com que a franquia abraçasse a cultura do excesso e o fanservice titilante em Xenoblade Chronicles 2. Mas, de alguma forma, eles reencontraram o caminho.

Xenoblade Chronicles 3 reflete toda a maturidade acumulada em 12 anos por uma série que precisou lutar para existir desde sua estreia, que a Nintendo só lançou no Ocidente após petições de fãs. O jogo simplifica a ação, elimina a juvenil erotização e conta a história de heróis que conversam como seres humanos de verdade, ao mesmo tempo em que refina a exploração e a construção de mundo que já brilhavam em seus predecessores.

O maior e melhor jogo da Monolith Soft não é infalível, mas prova que até mesmo RPGs japoneses com 100 horas de duração podem ser acessíveis se estiverem dispostos a deixar para trás a bagagem desnecessária do gênero.

Divulgação/Nintendo

O mundo de Aionios conhece apenas a guerra. Quase todos os seus habitantes lutam por Keves ou Agnus – duas facções inimigas com colônias de combatentes espalhadas por todos os cantos. Sem entender o porquê, os soldados tiram vidas alheias para prolongar as próprias, apesar de estarem condenados a viver por no máximo 10 anos.

Neste cenário de conflito perpétuo, Noah, de Keves, e Mio, de Agnus, desempenham os papéis de ‘off-seers’: soldados que tocam uma flauta especial após cada batalha em lamentação às almas dos mortos.

Depois de uma batalha em particular, os protagonistas e seus respectivos companheiros acabam deparando-se com uma descoberta inesperada e passam a ser tratados como rebeldes fugitivos por ambas as facções. Com tudo o que eles pensavam que sabiam sobre a realidade em cheque, eles precisam colocar suas diferenças de lado e cooperar para entender a verdade sobre suas vidas e a guerra que destruiu tantos de seus amigos.

A história de Xenoblade Chronicles 3 torna-se envolvente de imediato, logo quando os heróis do jogo reagem de maneira ponderada e razoável ao evento que virou seus mundos de cabeça pra baixo. A união entre os grupos de Noah e Mio não ocorre em meio a gritaria e drama forçado, como normalmente seria em um JRPG, mas sim com a naturalidade que condiz com a situação: eles não têm escolha a não ser ficarem juntos, então o jogo não perde tempo fingindo que isso não vai acontecer.

Por mais que alguns dos personagens estejam relutantes, eles transmitem tais emoções com sutileza, e não simplesmente descrevendo o que estão sentindo em linhas de diálogo truncadas. Sutileza, aliás, é algo que falta no gênero, mas que Xenoblade Chronicles 3 tem de sobra.

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Um dos companheiros de Noah é Lanz, um defensor habilidoso de cabeça quente. Já Mio traz consigo um estrategista arrogante chamado Taion. Em muitos outros JRPGs, estas breves descrições poderiam até mesmo ser resumos completos dos personagens, que ficariam reforçando seus respectivos estereótipos de “cabeça quente” e “arrogante” do início ao fim do jogo. Mas Xenoblade 3 tem personagens, e não caricaturas: não apenas os heróis, mas também dezenas de coadjuvantes têm arcos de desenvolvimento satisfatórios, que os tornam muito interessantes de acompanhar.

Um exemplo simples é a comandante Ashera: uma companheira em potencial que o grupo conhece no Capítulo 4 da aventura. À primeira vista, ela é uma lunática que só pensa em combate e que anseia pela morte no campo de batalha – um estereótipo bem batido no mundo do anime. Mas Xenoblade 3 confronta e aprofunda tal estereótipo, criando uma base racional para a existência de uma personagem assim em um mundo imerso em um estado constante de guerra. No fim das contas, Ashera torna-se uma personagem muito mais envolvente do que parece inicialmente.

Mais do que o sistema de combate refinado, o foco em uma exploração mais natural do mundo e os impressionantes visuais – acertos do jogo provavelmente mais impactantes para a maioria dos jogadores –, a maturidade do roteiro foi o que mais me surpreendeu em Xenoblade 3. É um jogo que levanta questões intrigantes sobre vida e morte, e que na sequência as explora e responde de maneiras ainda mais intrigantes, prendendo a atenção do jogador do início ao fim.

É importante dizer: não é necessário ter jogado os títulos anteriores para aproveitar a história e os personagens de Xenoblade 3, mas quem o fez tem uma experiência muito mais completa e satisfatória – até mesmo por conta das mecânicas do jogo, que são ainda mais impressionantes em comparação com os acertos anteriores da série.

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Munidos de um novo poder misterioso e de muita curiosidade, Noah, Mio e companhia partem em uma jornada para explorar Aionios em busca de respostas e de um novo estilo de vida. O acaso os libertou das amarras do Flame Clock – os contadores de energia vital que precisavam ser alimentados pelas vidas de oponentes –, e os heróis decidem visitar outras colônias de ambas as facções para destruir outros Flame Clocks e, de quebra, conseguir novos aliados.

E quando eu digo “Noah, Mio e companhia” eu realmente estou incluindo todo mundo na conta, já que todos os membros do grupo andam e lutam lado a lado. No total, a ‘party’ do jogador inclui sete pessoas: os seis heróis fixos e um companheiro recrutável extra, dos quais existem vários. O jogo é incomum no gênero por não fazer concessões, mostrando os sete na tela em todos os momentos, e permitindo que o jogador mude livremente quem está sendo controlado dentre os seis heróis até mesmo durante batalhas em curso.

A escolha de design contextualiza a aventura de uma maneira muito satisfatória, permitindo, por exemplo, que os personagens conversem em tempo real sobre achados no cenário.

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O fio condutor que une os quatro títulos da série Xenoblade é justamente o da exploração. Desde o Wii, a série da Monolith Soft usa enormes mapas abertos interconectados para representar seus mundos. Em sua maioria inabitados e tomados por vida selvagem, estes cenários escondem centenas de itens colecionáveis, monstros raros e até mesmo áreas secretas que apenas exploradores dedicados são capazes de encontrar.

Neste quesito, Xenoblade Chronicles 3 inova em comparação com seus predecessores principalmente no tamanho dos mapas, que são assustadoramente grandes até para os padrões da série. E diferente de Xenoblade 2, seu progresso por eles não é limitado de maneira arbitrária por ‘barreiras’ que cobram o uso de habilidades específicas – você é livre para andar por onde quiser, desde que esteja ciente que os inimigos de nível muito mais alto também são livres para te dar uma surra caso você entre no território deles.

Infelizmente para quem jogou os títulos anteriores, muitos dos cenários apresentados no novo jogo parecem familiares demais. Temas como ruínas tomadas pelo verde, lagos cercados por enormes cataratas e arquipélagos de ilhas flutuantes já são comuns na série, que parece sofrer para encontrar novas ideias de biomas.

Mas Xenoblade 3 tem o trunfo de ser o jogo da franquia que melhor utiliza seus mapas. No lugar da enxurrada de objetivos opcionais insignificantes do primeiro Xenoblade entram side-quests contextuais, que devem ser encontradas no mundo aberto ou então após os heróis ouvirem algum NPC comentando algum rumor em uma das colônias. Elas não apenas ajudam a expandir o conhecimento do jogador a respeito de Aionos e seus habitantes, como também tornam o simples ato de explorar todos os cantos do mundo mais recompensante.

Missões simples de coleta e entrega de itens ainda existem, mas ficam restritas a um simples menu que automatiza todo o processo após os materiais necessários serem obtidos. São chamadas de side-quests apenas missões completas com cutscenes e interações significativas com o mundo e NPCs – sendo que algumas delas são até dubladas e resultam no recrutamento de novos companheiros para a equipe.

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O sistema de heróis recrutáveis também é um grande avanço para a série, que tinha algo semelhante em Xenoblade 2 na forma das Blades. Naquele jogo, personagens que serviam como avatares para os protagonistas podiam ser obtidos na narrativa principal, ou através de uma roleta. A variedade de opções era grande, mas a representação das diferentes Blades era desbalanceada, com algumas delas sendo meras imagens estáticas. Em Xenoblade 3, todos os heróis recrutáveis têm histórias próprias que os contextualizam no jogo e, mais importante, uma classe própria.

O combate do novo título é regido por um sistema extremamente flexível de classes, similares aos ‘jobs’ de um Final Fantasy clássico. Cada personagem tem a própria, mas pode aprender e utilizar as classes de seus companheiros após lutarem lado a lado por um tempo. Após acumular o domínio de algumas classes em um único personagem, o jogador pode combinar habilidades de diferentes funções da maneira que desejar. Considerando todos os sete guerreiros que entram em campo por vez, o número de variações de equipes possíveis é gigantesco.

A maneira como um personagem progride individualmente por cada classe ainda resolve um problema antigo de Xenoblade: a ansiedade causada pela ideia de mudar de personagem controlável.

Em Xenoblade 3, o jogador é incentivado a sempre experimentar com novos personagens e classes, nem que seja apenas para encontrar maneiras de fortalecer sua classe favorita. Através deste sistema, o jogo garante que o jogador tenha contato com todas as ferramentas que estão a seu dispor.

As mais de 20 classes são divididas em três grupos: atacante, defensor e curandeiro, mas diferem muito em funcionalidade. A classe Stalker, por exemplo, é uma atacante que usa arco e flecha para desferir dano baixo a uma distância segura, ideal para jogadores que gostam de ficar em uma posição confortável na batalha. Já atacantes mais ousados podem optar pela classe Flash Fencer, que tem ataques mais poderosos, mas que chamam muito mais a atenção dos oponentes e colocam o usuário em perigo.

Principalmente no caso de inimigos de elite ou chefões, certas batalhas podem durar vários minutos – o que já era verdade em jogos Xenoblade anteriores. Lutas assim podem ficar monótonas. Mas a possibilidade de trocar de personagem livremente permite ao jogador mudar o ritmo da ação quando quiser, até mesmo mais de uma vez durante uma única luta.

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Ao combinar classes, o jogador pode usufruir das Fusion Arts: a combinação entre duas habilidades de classes distintas em uma só, que otimiza o tempo do herói no combate. Como em títulos anteriores, o posicionamento de um personagem relativo ao inimigo importa na hora de usar certas Arts, assim como a ordem na qual certas habilidades são usadas. O jogador pode realizar comandos com o timing preciso para acelerar a ação de seu herói no combate, e também fundir temporariamente dois personagens para transformá-los em um tipo de Evangelion chamado Ouroboros, que tem grande força.

Parece complicado, né? E é. Mas o Xenoblade 3 é elegante na maneira que ensina o jogador, alongando o processo de aprendizado de uma maneira espaçada, que não o torna cansativo.

Ver o jogo em ação sem ter o controle em mãos é intimidador por conta da quantidade de botões, números, linhas de texto descritivas e personagens correndo para lá e para cá, mas a realidade do jogador é diferente. Xenoblade 3 apresenta novas mecânicas e opções de personalização com toda a paciência do mundo, reservando certos desbloqueios de funções de combate para a 40ª hora da aventura. Com novos poderes sendo apresentados a um ritmo homeopático, o jogador tem tempo para se aclimatar a cada novidade em seu próprio tempo.

Em contrapartida, enquanto tais opções não são desbloqueadas, as lutas nas primeiras horas do jogo são um pouco tediosas.

Caso o jogador ainda se sinta sobrecarregado, ele pode optar por reduzir a dificuldade da aventura para o Easy, que transforma as lutas em passeios. Caso contrário, também dá para optar pelo Hard – que testa os limites da estratégia e da execução do jogador, mas que eu achei um pouco tedioso por causa do tamanho das barras de vidas dos inimigos.

Xenoblade 3 ainda tem o retorno do conceito de pontos de experiência bônus, presente em alguns de seus predecessores. Através deste sistema, pontos de experiência obtidos através de tarefas opcionais, como o descobrimento de novas áreas e o cumprimento de side-quests, são armazenados em um banco antes de serem aplicados na barra de progresso de cada personagem. Cabe ao jogador decidir quando (e se) tais pontos de experiência serão usados, ou não.

É uma solução inteligente que impede um jogador que gosta de explorar e cumprir objetivos opcionais de ficar forte demais para as missões principais da história. Pessoalmente, optei por nunca utilizar os pontos de experiência bônus, e me senti desafiado pelo jogo ao longo de toda a sua duração mesmo tendo feito todas as side-quests que encontrei.

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Seguindo a tradição da série, Xenoblade Chronicles 3 tem uma daquelas trilhas sonoras que nunca mais vão deixar o cérebro dos jogadores. Alguns dos temas encontrados logo nas primeiras horas da aventura são perfeitamente comparáveis às peças mais épicas de RPGs menos memoráveis. Yasunori Mitsuda, Manami Kiyota, Kenji Hiramatsu e ACE mais uma vez se mostram indispensáveis à franquia, dando identidade própria a cada nova área através de suas composições.

O jogo também é um dos trunfos técnicos mais impressionantes do Switch, com telas de carregamento e performance notáveis para uma aventura com áreas tão descomunais e detalhadas.

Sei que é uma comparação cômica, mas são dois jogos com estruturas de mundo aberto parecidas lançadas no mesmo ano: em gráficos, Xenoblade Chronicles 3 parece uma geração à frente de Pokémon Legends: Arceus.

Como Xenoblade 2 e a Definitive Edition do primeiro jogo, o título utiliza um esquema de resolução dinâmica para manter a performance o mais estável possível a todos os momentos. Xenoblade 3 raramente sofre quedas bruscas na taxa de quadros por segundo, mesmo em lutas entre dezenas de personagens, e é perfeitamente apreciável até mesmo no modo portátil do Switch ou no Switch Lite – diferente de Xenoblade 2, cuja resolução despencava violentamente nas mesmas condições.

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Xenoblade Chronicles 3 é um jogo sobre o real valor da vida, e todos os aspectos da produção evidenciam este tema.

Todos os soldados que você encontra nas colônias por onde passa têm nomes, histórias e relações. Os que você encontra mortos pelo caminho, sem identificação, Noah e Mio enviam para o além com suas flautas. Se os heróis voltam para uma área do início do jogo após aventurarem-se por inúmeras outras, os habitantes daquela área antiga terão coisas novas a dizer, e talvez até problemas novos para serem resolvidos. Aionos está sempre mudando por conta do impacto do jogador, e acompanhar tais mudanças é muito prazeroso.

Noah, Mio, Lanz, Taion, Eunie e Sena são figuras cativantes. Eles conquistam o jogador sem precisar exagerar, tentando sempre dar o melhor de si para cada situação difícil, mas sem nunca fingirem ser heróis infalíveis. Eles sofrem, crescem, aprendem e erram constantemente, e colidem um no outro de maneiras muito divertidas.

Para criar este novo jogo, a Monolith Soft revisitou os títulos anteriores sob a ótica da Marie Kondo: o que não trazia alegria, eles cortaram fora. Tudo o que sobrou tem propósito. Xenoblade Chronicles 3 é um RPG gigantesco, mas ao mesmo tempo enxuto e direto ao ponto, sem excessos ou rebarbas.

E ele também é um RPG japonês pelo qual nenhum fã precisa se desculpar.

  • Lançamento

    29.07.2022

  • Publicadora

    Nintendo

  • Desenvolvedora

    Monolith Soft

  • Censura

    14 anos

  • Gênero

    RPG

  • Testado em

    Nintendo Switch

  • Plataformas

    Nintendo Switch

Nota do crítico