Esse vai ser um pouco diferente. Há alguns jogos que são especiais, e portanto precisam ser avaliados de maneiras especiais. Não basta sentar aqui e falar como as mecânicas, história, gráficos e trilha sonora são, é preciso entrar mais a fundo na experiência. Boa arte sempre fala conosco num nível pessoal. É o sorriso no seu rosto e a lágrima nos seus olhos que só seu livro, filme, série ou música favorita são capazes de invocar. O mesmo, é claro, acontece com games.

E Persona 5 é um jogo muito especial. Por isso, eu preciso falar sobre ele de forma diferente.

Persona 4 Golden é meu jogo favorito, e eu sempre fui muito vocal quanto a isso. Persona 5 não vai roubar o primeiro lugar, mas ainda sim, as 94 horas e 21 minutos que eu passei explorando Tóquio junto com Ryuji Sakamoto, Ann Takamaki, Yusuke Kitagawa, Makoto Niijima, Haru Okumura e Morgana - nosso fantástico gato de estimação - além de outros inúmeros personagens, foram inesquecíveis. Desde as centenas de batalhas que enfrentamos ao som da impecável trilha sonora composta por Shoji Meguro até as inúmeras programações sociais, Persona 5 amarra seu coração com estilo, reproduzindo com tanta fidelidade o sentimento de amizade e juventude, que o jogo em si parece virar um companheiro fiel.

Desde que minha cópia de Persona 5 chegou, não houve um dia - nem mesmo os que cheguei em casa cansado da CCXP Tour Nordeste - em que eu não passei pelo menos alguns minutos jogando. Foram quase 100 horas imerso no mundo criado pela Atlus e P Studio, mas ainda sim, esse tempo simplesmente voou. Toda vez que Persona 5 entra na tela de carregamento, uma mensagem escrita “Take Your Time” - não tenha pressa, em português - fica no cantinho, lembrando o jogador de não ter pressa. É um jogo longo, afinal de contas.

Crianças enxeridas

Mas diante do contexto da história - na qual um grupo de adolescentes recebe poderes especiais chamados Persona, manifestações metafísicas de suas personalidades - eu passei a interpretar o “Take Your Time” de forma diferente. Este grupo de jovens, os Phantom Thieves, como vamos nos referir a eles daqui em diante, decide usar seus poderes para “roubar” os desejos deformados de pessoas na sociedade. Os alvos variam de professores abusivos a políticos corruptos, e sempre há um motivo excelente para atacá-los, já que Persona 5 faz um trabalho excelente em desenvolver seus vilões. É com base nisso que a frase “Take Your Time” passou a ser “Roube (ou Tome) Seu Tempo.”

Todo jogo da série Persona é sobre alguma coisa. Persona 3 é sobre morte e vida, Persona 4 sobre mentiras e verdade. Persona 5, por sua vez, é sobre um conceito muito mais mundano e realista. Este jogo fala sobre a sociedade pós-milenista em que vivemos, suas estruturas sociais infernalmente injustas, especialmente para quem está no começo da vida, e a escuridão tremenda que existe nos corações das pessoas, incluindo aquelas que são amadas pelas massas. Em resumo, P5 é sobre a corrupção e a injustiça, que entre outras coisas, tiram o tempo daqueles que são jovens.

Cada vez mais, adolescentes e jovens são obrigados a tomar decisões impactantes cedo, o erro - talvez a característica mais humana do mundo - é punido de diversas formas, seja ele algo grave ou pequeno, como errar a questão numa prova. Em Persona 5, os Phantoms Thieves decidem se rebelar contra isso. É por isso que eles atacam professores, donos de empresas, figuras da lei e homens de poder. Essas pessoas passaram a ter desejos distorcidos, e por isso seus corações viraram estruturas enormes feitas para proteger esse tesouro corrupto.

No jogo, essas estruturas se manifestam através de grandes construções, como pirâmides ou castelos, denominadas pelos Thieves de Palácios. Em cada um deles, há um tesouro corrompido que, se roubado, vai fazer com que o Palácio seja demolido e o coração mude, fazendo com que o dono do mesmo tenha uma mudança, confesse seus erros e crimes, e passe a viver uma vida justa. É um poder tentador, e isso se reflete na história do jogo, já que os nossos heróis são constantemente testados em sua capacidade de permanecer no caminho da justiça enquanto fazem algo que, francamente, todos nós desejamos. Sempre há expectativas injustas que nos forçam a lidar com consequências indesejadas, e muitas vezes a culpa disso vem da sociedade em que vivemos e sua obsessão por bons empregos, dinheiro, fama, e especialmente, uma boa imagem.

É usando seus Personas - só pra lembrar: manifestações da personalidade verdadeira deles - que os Phantom Thieves lutam contra isso. É uma ideia quase romântica. Ladrões no melhor estilo Zorro ou Onze Homens e Um Segredo lutando por uma reforma social que não tem ares políticos ou filosóficos. Eles se recusam a olhar o mundo como algo além do preto e branco, e essa visão é desafiada repetidas vezes ao longo da história. Nem sempre as respostas vêm com facilidade para o grupo, mas o crescimento deles como pessoas durante esse processo é palpável, o que garante que todo o processo necessário para chegar neste ponto, para eles como personagens e para nós como jogadores, não seja sem sentido.

Muito mais do que só apertar botões

Qualquer jogo pode contar essa história com as cutscenes e diálogos certos, mas o que torna Persona 5 especial, o que sempre tornou a franquia Persona especial, é sua capacidade de integrar a narrativa e as mecânicas. Essa é a característica fundamental dos melhores jogos. O que torna videogames únicos é a interatividade, então usar o gameplay para comunicar uma mensagem é o maior feito que eles podem fazer. A tensão que Joel e Ellie vivem em The Last of Us é passada para nós por meio de coisas simples, como o jogo não entrando em pausa enquanto construímos uma arma para enfrentar os infectados que estão se aproximando. Ou a solidão de John Marston ficando cada vez mais clara enquanto cavalgamos, sozinhos, pelo deserto do Velho Oeste em Red Dead Redemption. Ou como em Mega Man, nosso robô azul fica cada vez mais poderoso toda vez que a história mostra ele derrotando um chefão, algo que, é claro, nós fazemos enquanto jogamos.

Os exemplos são vários, mas nenhum deles, pra mim, chega no nível de profundidade de Persona. Cada personagem do jogo precisa crescer, sentimentalmente, para se fortalecer e continuar a luta contra a corrupção que assola o mundo. Para que isso aconteça, é preciso passar tempo com eles, ajudando-os a enfrentar dramas pessoais e situações difíceis. Conforme isso acontece, você, e eles, passam a descobrir mais sobre suas vidas, sobre quem vocês são, e o que precisa mudar para que vocês virem pessoas melhores. Isso, naturalmente, reflete nos Personas, os espíritos que usamos para batalhar os demônios - chamados aqui de Shadows - que representam a escuridão da sociedade.

Então, cada vez que você sai com alguém, seja para comer ou sushi ou sair de sua zona de conforto, isso afeta diretamente o gameplay. Se eu e Ryuji ficamos mais amigos, é natural que haja mais confiança entre nós, e é por isso que quando batalhamos com nossos Personas, há mais possibilidades no combate. Cada amigo em Persona 5 - algo que no jogo recebe o nome de Confidant - abre mais habilidades na jogabilidade. O político honesto que caiu do poder porque se recusou a jogar o jogo sujo que seus colegas gostam, por exemplo, nos ensina como virar bons oradores, o que por sua vez nos ajuda a negociar com Shadows e recrutá-las para nossa causa. A jogadora de shogi, um tradicional jogo de tabuleiro japonês, nos dá estratégias para vencer partidas, o que abre um novo leque de possibilidades na hora de enfrentar inimigos. Eu posso dar inúmeros exemplos disso, mas acho que vocês já pegaram a ideia.

Até o próprio protagonista entra nesse sistema. Como esse jogo é um RPG, há uma enorme variedade de decisões para fazer. Elas vão de coisas pequenas como a resposta para uma pergunta em sala de aula, até atividades do dia a dia como em qual restaurante ir trabalhar, ou decisões importantes como quando infiltrar o Palácio de um alvo. Por isso, o personagem principal tem o poder da “Wild Card”. Ele é imprevisível, sua personalidade está sempre sendo moldada por conta das ações do jogador, e por isso ele é o único capaz de usar múltiplas Personas, já que cada uma pode representar um dos infinitos aspectos de quem ele é através de nós.

Vale a pena destacar que o roteiro também é bem desenvolvido por si só. Os diálogos são, em sua maioria, bem escritos e o desenrolar do enredo segue um bom ritmo. Ele pode ser um pouco arrastado no começo, mas logo pisa no acelerador e vai ficando cada vez mais frenético até um ato final primoroso. É verdade que há alguns problemas na tradução do japonês, especialmente na fala dos personagens, mas felizmente o ótimo trabalho de dublagem faz milagres em muitos desses casos, convencendo você de que sim, aquilo é uma pessoa real falando aquelas palavras.

Para que os Phantom Thieves fiquem mais fortes, eles, como um grupo e como indivíduos, precisam estar inabaláveis diantes dos caminhos pecaminosos do mundo. Enquanto Persona 5 nos conta a história de como isso acontece, ele também faz com que isso se reflita no gameplay. Se estamos mais poderosos, obviamente conseguiremos lutar e vencer os inimigos mais perigosos de todos.

Podemos garantir que isso aconteça realizando inúmeras atividades em Tóquio. Ir ver um filme, comer alguma coisa, jogar videogames, praticar um esporte e qualquer outra programação típica de jovens do século 21. A princípio, você chama seus Confidants para fazer algo, mas logo logo, a intimidade criada entre vocês vai fazer com que eles te chamem pra sair, fazendo com que o jogo reaja de uma forma particular ao que você escolhe. Assim como no mundo real, não há tempo para todos, então precisamos decidir com quem iremos gastar nosso precioso tempo naquele dia, afinal de contas só temos um ano para desenvolver essas amizades (a série Persona conta histórias que vão de abril a abril). O gerenciamento de tempo pode assustar à primeira vista, mas rapidamente paramos de pensar nele como um sistema e simplesmente seguimos com nossa vida. Não é assim que fazemos no nosso cotidiano?

É aqui que P5 fica um pouco abaixo dos últimos jogos da franquia. O incentivo mecânico - as consequências que os Confidantes têm no gameplay, especialmente no combate - é maior do que nunca, mas as narrativas paralelas não chegam ao nível de Persona 4 e Persona 3. Os personagens dentro do grupo principal são ótimos, como esperado, mas os secundários, tirando um ou outro, atraem mais pela recompensa na jogabilidade do que por estarem envoltos em uma história cativante. Isso, felizmente, não é um defeito terrível. Não ser tão bom quanto os últimos dois jogos Persona significa que os NPCs são muito bons, só não são espetaculares.

E, como dito acima, as recompensas mecânicas são excelentes. O combate de Persona é em turno, mas as lutas acabam em minutos - segundos, se você souber o que está fazendo. Cada embate é uma dança em ritmo frenético - em P3, a música é hip-hop, em P4 é pop, e aqui é um jazz animado - e, como em qualquer dança, se você tomar os passos certos, o resultado é brilhante. Cada Shadow tem pontos fortes e fracos, e você pode explorar isso usando ataques elementares e mágicos, ou simplesmente partindo para pancadaria. Quando o nível dos seus Confidants está mais avançado, é possível passar sua vez de atacar para outra pessoa, ou usar uma habilidade antes indisponível, e por aí vai.

Quando você se torna profissional no combate, o conceito dos turnos desaparece e tudo passa a ser um grande espetáculo visual graças ao excelente trabalho gráfico da Atlus. Esta qualidade, é claro, não é exclusiva às batalhas, mas se estende pelo jogo todo. As interfaces são vivas e vibrantes, os personagens - mais um exemplo do talento de Shigenori Soejima - são bem desenhados e expressivos, e as dungeons, que também receberam melhorias gigantescas no gameplay - antes elas eram apenas corredores, aqui são repletas de desafios e mecânicas únicas - causam um impacto nos nossos olhos desde o primeiro minuto em que pisamos nelas.

Toda a apresentação do jogo é incrível. Eu nunca vi um menu de fim de batalha tão animado e estiloso como os de Persona 5, por exemplo, mas sem dúvida a melhor parte deste espetáculo audiovisual é a trilha sonora. Poucos são os jogos atuais que fogem das duas opções mais comuns que existem no meio - chiptunes à moda antiga ou orquestras elaboradas - mas Persona sempre foi uma das franquias que ficou à parte. O tema do cotidiano, a música que toca quando estamos roubando um tesouro e a faixa de abertura do jogo são apenas alguns dos melhores exemplos que fazem parte deste álbum maravilhoso.

Dizendo adeus

Tudo que foi citado até agora ajuda a construir uma verdadeira obra prima dos games, mas para que ela se consolide, é preciso acabar. Uma boa história precisa ter, pelo menos, um final competente. Dar spoilers sobre o que acontece com os Phantom Thieves seria um crime, mas eu prometo que a reta final do jogo é repleta de reviravoltas e decisões narrativas excelentes, incluindo uma surpresa que vai instantaneamente trazer um sorriso para veteranos da série.

Mas, pra mim, o que torna Persona excelente é o fato de que ele acaba. Ao contrário de outros RPGs, não há como continuar explorando e lutando depois que os créditos rolam. Sim, há um New Game+, mas a história tem um ponto final. Isso significa que, independente do que aconteça, você vai precisar dizer adeus aos seus amigos. O fim de Persona 5, assim como os dos últimos títulos da série, é um adeus do jogador aos personagens por quais ele se apaixonou. É um dos momentos mais felizes e tristes que os games têm a oferecer. É como ver a porta fechando enquanto todas pessoas que você ama estão do outro lado.

De uns anos pra cá, eu passei a fazer parte de um grupo de amigos que genuinamente se tornou minha segunda família. Nós nos vemos várias vezes por semana, conversamos diariamente, somos profundamente diferentes e nos damos incrivelmente bem. Foi impossível não pensar neles durante cada segundo que passei em Persona 5, e dar adeus aos meus amigos in-game foi, eu imagino, semelhante ao sentimento que eu sentiria caso tivesse que deixar as pessoas que me acompanham fora do jogo, algo que com certeza é uma possibilidade, especialmente porque a sociedade em que vivemos é, infelizmente, extremamente parecida com a de Persona 5.

Toda grande obra artística fala conosco em um nível pessoal, e a franquia Persona acerta em cheio comigo. Persona 5 não é o melhor jogo desta série - mecanicamente ele é o mais avançado, mas o conjunto da obra de P3 e P4 me agradam mais - mas ele reproduz com maestria a principal característica desses RPGs japoneses. Não há nenhuma outra experiência nos consoles, PCs, portáteis ou smartphones, que tão perfeitamente captura a sensação de estar com os seus amigos mais amados.

E é por isso que Persona 5 é especial.

Persona 5 está disponível no PlayStation 3 e PlayStation 4. O jogo foi testado num PlayStation 4. Clique nos nomes das plataformas para ver o preço das versões digitais.

Nota do crítico