[Fissurados em uma novelinha]

O brasileiro é acostumado e, há cerca de quarenta anos, deixa que seu dia-a-dia seja invadido por personagens que, na maioria das vezes, sofrem por amor e, em pouquíssimas vezes, falam de qualquer verdade que vá além de questões do afeto.

Poucos espectadores têm alguma coisa contra o velhíssimo hábito de se deixar levar pelo que a Globo e os índices de audiência, público, querem ver. Entretanto, com o lançamento de algumas séries americanas em DVD, podemos sonhar com algo a mais, um melhor nível de roteiro e produção a que poderíamos assistir nas nossas telinhas de rede aberta.

The L word trata da complicada existência de um grupo de lésbicas que vivem numa comunidade familiar em Los Angeles. Ao contrário de Queer as folk (Os assumidos - ridículo título nacional) que tem sido exibido em madrugadas do Cinemax, o drama das mulheres gays não atraiu a TV a cabo brasileira.

[Antropologia de bar]

Novela das nove é um evento.

É o grande evento da televisão brasileira. Que é conservadora. Ao mesmo tempo em que assistimos sem hipocrisia a cenas picantes (acostumados desde a época das pornochanchadas no cinema), parece que gostamos sempre do mesmo, de pouca inovação. O enredo das telenovelas (com as raras exceções dos anos 70 e 80) segue os moldes da literatura romântica do século XIX. Aguinaldo Silva não cansa de repetir que não inventa nada. Copia e se copia. Admite que o público não gosta de ver seus atores preferidos fazendo coisas muito diferentes. Com a Globo não se brinca. É preciso dar espaço ao patrocinador. Se ganha mais com merchandising. Os atores são os escolhidos da vez para revistas de fofocas e programas vespertinos alimentarem o imaginário popular.

[Tudo de bom]

A televisão americana também corre atrás de patrocinador e, cada vez mais, ganha com a venda de seu produto em DVD.

Assim como em Queer as folk, The L word (produzido pelo mesmo Showtime, canal a cabo), os realizadores não escondem que buscam um apuro estético (só escolhem gente bonita ou bem produzida) e colocam pitadas de glamour especialmente na vida noturna dos gays, o que inclui drogas a granel e sexo idem. A música é sensual, todo mundo trepa bem e raramente falta dinheiro para extravagâncias, mesmo para personage ns que estão na pindaíba. Mas o mundo mais do que real destas séries rapidamente conquista o espectador (não precisa ser gay, a trama tem de tudo). Os problemas se concentram nas relações afetivas, assim como as novelas brasileiras, mas arriscam muito mais em sua análise sociológica/antropológica e na recusa de um happy ending.

[Fissurados em um museusinho]

Uma das tramas de The L word é a repercussão de uma exposição em museu de arte contemporânea dirigido pela personagem feita por Jennifer Beals (ainda com a mesma carinha de Flashdance, pasmem!). O título da exposição é "Provocações", escandalosamente sexualizada, mexendo com a sagrada imagem cristã ao exibir uma instalação em vídeo com Maria Madalena sendo sodomizada por Jesus. A questão toma alguns capítulos e mostra como a arte ainda incomoda os americanos.

Em Nova York, a sensação do momento é visitar (para quem consegue) o novo MOMA. Totalmente remodelado e com mais obras expostas, o arquiteto Yoshio Taniguchi apostou em uma integração absoluta entre o novo prédio e a cidade. Não é raro, em algumas galerias, as pessoas se acumularem nas janelas para contemplar Nova York.

Respiremos: a arte ainda pode importunar.

[Loucura no Oscar]

Não só as artes plásticas têm incomodado.

A indústria cinematográfica sempre foi doida por um maluquinho, mas, desta vez, se observarmos com maior cuidado, o índice de transtornos mentais nos filmes indicados ao Oscar é enorme.

Em Sideways, o alcoolismo é evidente. Até para bons bebedores é difícil acreditar que o quarteto central apenas se diverte com a bebida. Além disso, a depressão também é discutida via a personagem de Paul Giamatti. Qual o limite para o alcoolismo?

Bom momento para esclarecer. A rigor da palavra, alcoólatra não necessariamente é um viciado. É um adorador da bebida. Pode colecioná-la, mas não necessariamente ingeri-la. A patologia é alcoolismo e o doente, alcoólico. Palavra de psiquiatras (há quatro, aqui no Omelete).

[Toques de TOC]

O transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) certamente é o tema principal de O aviador.

O filme já anuncia em seu prelúdio, com uma explicação freudiana (bem selvagem) que Howard Hughes seria obsessivo por uma determinação de sua mãe, temerosa de doenças contagiosas e que ensina o filho a soletrar com a palavra q-u-a-r-e-n-t-e-n-a.

O longa é um show sobre a doença, provavelmente o primeiro a levá-la a sério, mostrando o sofrimento absoluto de Hughes que se dá conta de seu tormento psíquico. Bem diferente de Melhor é impossível, que transforma o TOC em comédia.

Querem mais obsessão? Eterno amor, em que Audrey Tautou busca incessantemente seu namorado dado como morto. Qualquer um percebe que a tenacidade da protagonista ultrapassa o romantismo proposto pelo filme.

[Prêmios ao suicídio]

Em busca da terra do nunca lembra a possível pedofilia do protagonista feito por Johnny Depp, o autor teatral J.M. Barrie . Sua fixação por crianças teria dado origem a Peter Pan. Além de Sideways, Ray também apresenta a personagem principal e seu abundante envolvimento com drogas. Closer - Perto demais também trata da depressão por meio da personagem de Julia Roberts. Entretanto, talvez o grande tema do Oscar deste ano seja a eutanásia, ou o suicídio assistido, como preferem alguns. Os dois melhores filmes de 2004 segundo o Oscar foram Mar adentro (melhor estrangeiro) e Menina de ouro, que avançam na discussão da morte como opção.

O primeiro, espanhol, recria a questão do filme De quem é a vida, afinal, feito com Richard Dreyfuss em 1981. Era a adaptação da peça teatral de Brian Clarck que discutia exatamente o mesmo ponto de Mar adentro: a possibilidade do suicídio assistido para um indivíduo que não quer mais viver e não tem condições de tirar a própria vida. Tanto a personagem de Dreyfuss como o de Javier Bardem fazem indivíduos tetraplégicos.

[De volta a Dirty Harry]

Clint Eastwood novamente se coloca no papel de justiceiro em Menina de ouro. Mas, ao contrário da série Dirty Harry, não decide o destinos dos outros segundo seu próprio senso de justiça.

Desde Os imperdoáveis, Eastwood revê o resultado da contracultura nas telas do cinema: abaixo a lei, faça-a você mesmo. No filme de 1992, em plena atmosfera de faroeste, heróis e vilões se encontram com ares de decadência e estupor frente à violência que não tem sentido, nem fim. Em Menina de ouro, Clint revê o conceito de justiça-com-as-próprias-mãos, mas, ao contrário do que se ampliou com a contracultura, aqui a responsabilidade é o peso.

Com direito a conversas com um sacerdote conservador, talvez na cena mais impressionante do filme: um Eastwood alquebrado, implorando compreensão, olhar perdido e atônito ouvindo o blá blá blá do padre que recita a religião enquanto mantém o coração fechado à compreensão. Resultado segundo o roteiro do filme: a religião não dá conta da culpa, nem está interessada em discutir a eutanásia. Quem a praticar vai para o inferno e ponto final.

Vontade de morrer é doença? Até que ponto a vida deve ser preservada quando a sucessão de dias parece uma calmaria, um tédio sem fim?

[Que falta você me faz]

É de chorar de bonito o disco novo de Maria Bethânia.

A ativíssima artista nem bem lançado o CD de homenagem à Rosinha de Valença Namorando a Rosa já nos oferta novo petisco. Desta vez a homenagem é a Vinícius de Moraes, os arranjos, a delicadeza insuspeitada na voz forte, promovem emoções pela beleza das músicas e a soberba poesia.

É uma ode à mulher, do jeito lírico e romântico que só nós brasileiros temos.

A todos, teu ouvido; a voz, a poucos.
Hamlet
Shakespeare