Jack Vance

Dignos de glória e de lembrança eterna são os artistas cujas criações inspiraram (e ainda inspiram) outros a criarem obras que transpõem a criação dos primeiros para diferente arte. Narrativas e poemas épicos que se tornaram óperas, filmes e quadrinhos; livros que serviram de base para discos inteiros; mundos fantásticos criados e descritos com beleza e vida, retratados em um sem-fim de pinturas e imagens são apenas alguns exemplos de uma atividade milenar, extremamente viva em nossa época. No entanto, retornemos às palavras iniciais deste modesto discurso: Será a glória possível àqueles que não têm suas criações mantidas na memória, individual ou coletiva?

Já se tornou chavão afirmar que esta época em que vivemos bombardeia nossa cabeça e sentidos com informação demais. Verdade pura: basta um passeio curto em qualquer cidade média ou espiar a quantidade de meios de comunicação disponíveis para toparmos com essa realidade amedrontadora. Outra acusação dirigida ao nosso tempo: que nele há muita informação e pouco conhecimento, sendo este muito mais nobre do que a primeira. Pois bem, em uma época assim, em que, por necessidade, o passado é logo descartado como velharia inútil e em que impera uma espécie de presente eterno, o que será dos grandes criadores e de suas grandes obras? Como fica a glória de terem criado quase tudo que é vendido como a última grande coisa, sem que haja a memória para acolhê-la e nutri-la?

Há, nos dias que correm, um sem-fim de meios de comunicação e entretenimento: as formas ditas mais leves ou superficiais de cinema, música e quadrinhos, os jogos eletrônicos, a onipresente internet, os RPGs. Estes últimos são um dos meios modernos de entretenimento cuja relação com a literatura é mais intensa.

Já é carne de vaca requentada dizer que a melhor literatura fantástica foi (e é) o material usado pelos criadores de RPGs para construir os mundos em que os sistemas são jogados e que essa inspiração/saque (chamemos como preferir) prolonga-se até hoje. Atendo-se somente aos medalhões, lembramos de AD &D/Tolkien, Call of Cthulhu/Lovecraft, Amber/Roger Zelazny .... mas, pensemos... toda literatura que foi utilizada para a construção de RPGs, card games e jogos eletrônicos é realmente lembrada e reverenciada como merece? Ou será que os nomes e criações dos escritores de um às vezes recente passado é somente mais um dado, perdido no meio de uma pilha de outros, todos condenados ao limbo (quase) imediato?

De fato, no turbilhão da modernidade há pouco espaço para o ontem comparecer em plenitude. Desliguemos nossa percepção do caos de imagens e dados e, enquanto ouvimos uma daquelas velhas peças de rock progressivo de trinta minutos, contemplemos as velharias que geraram as diversões modernas .

Calabouços, dragões e anéis

Comecemos pelo primeiro e mais conhecido dos RPGs, AD & D. Todos sabemos que a fantasia épica em língua inglesa, principalmente O Senhor dos Anéis, foi a base para cenário e personagens do dito cujo. Mas não a única. E quanto a Jack Vance, mestre que fundiu a fantasia com a ficção científica e escreveu uma miríade de grandes obras? Sua mais celebrada criação é O planeta dos dragões, um romance publicado em 1963, passado em um futuro muito longínquo, cujo cenário é um planeta árido e atrasado no qual a principal arma de guerra é o dragão, uma espécie de grande e feroz réptil dividida em seis raças, cada qual com cor, porte e armas naturais particulares; exatamente como os dragões de AD & D. Sim, um livro dez anos anterior à aparição do lendário Dungeons & dragons foi lido por Gygax e amigos e teve elementos usados na confecção do primeiro RPG.

Incrível é existir uma edição brasileira, publicada em 1979 pela Francisco Alves, oculta na poeira dos sebos, à espera que novos leitores conheçam a mais vívida e empolgante batalha entre dragões já narrada.

E Poul Anderson, outro luminar da ficção científica que fez breves mas poderosas incursões à fantasia épica? Uma delas, A espada quebrada, de 1954, tem muitas afinidades com a obra de Tolkien: uso exuberante das mitologias nórdica e celta, uma terrível guerra que mudará o mundo, uma arma mágica maldita, hordas de criaturas malignas. Esse livro curto e intenso é outra fonte, perdida na selva do passado, da qual os RPGs de fantasia brotaram. E também existe em língua portuguesa, numa edição mal traduzida e impressa, da Global Editora, de 1975. Raríssima.

Cartas jogáveis e o maná

Deixemos os RPGs e entremos nos domínios dos jogos com cartas - Magic the Gathering, sendo mais preciso -, em que encontramos um conceito que é o fundamento do jogo: o mana, uma espécie de poder ou substância que permeia lugares, seres e objetos, e que permite a existência da magia no (se é que podemos usar o termo) mundo criado por Richard Garfield, leitor de escritores em língua inglesa que utilizaram o maná para dar uma explicação lógica, ainda que fantástica, para seus contos e romances de fantasia.

O norte-americano Larry Niven foi um dos mais felizes membros dessa trupe, em uma série de contos que busca explicar a causa e origem da magia, todos situados num passado distante, em que a terra fervilha de misticismo e seres mitológicos. Um desses contos, Para que serve uma adaga de vidro? faz parte de Magos - Os mundos mágicos da fantasia, uma coletânea editada pela Melhoramentos em 1990. Portanto, o título de criadores do mana cabe a Niven e seus pares, e não a Garfield, seu admirador? Cabe a eles serem lembrados como introdutores do termo na literatura. O termo maná (como é corretamente grafado) vem da antropologia. Foi registrado em 1891, por um estudioso de povos do Oceano Pacífico, e sua descrição é idêntica ao mana de Niven e Garfield, que nada mais fizeram do que se apropriar de pesquisas sobre crenças mágicas.

Poderíamos seguir por muitas e muitas trilhas nessa linhagem dos autênticos criadores da fantasia moderna: falar sobre Clifford D. Simak, que criou a explicação científica corrente sobre a existência de universos paralelos, relembrar William H. Hodgson, um dos mestres de H. P. Lovecraft, explorar a Terra Agonizante de Jack Vance, mas faremos uma pausa e retomaremos o passeio através dos mundos fantásticos nos próximos textos.

O que foi contado acima certamente não é uma revelação espantosa para muitos dos que alcançaram este parágrafo. É conhecimento comum que todas manifestações de ficção científica, fantasia e terror, desde seus primórdios, nutrem-se do caudal de lendas, mitos e folclore presentes em todas as culturas antigas e/ou primitivas. Mas o conhecimento das obras que transformaram esse caudal em grande ficção não deve ser esquecido, sob pena de simples jogos, gerados tão somente para entretenimento, receberem a glória que cabe em verdade, aos verdadeiros criadores de mundos fantásticos.