O estudo acadêmico das histórias em quadrinhos é sempre desejável. Bom ou mau, representa o reconhecimento da comunidade científica universitária a uma arte que já tem mais de cento e cinqüenta anos de existência - se considerarmos autores como Töppfer e Busch, que elaboraram narrativas na linguagem gráfica seqüencial bem antes do final do século XIX -, e de um meio de comunicação de massa que diariamente atinge milhões de pessoas no mundo inteiro, influenciando o cinema, a televisão, o rádio e a literatura de massa. Assim, cada dissertação de mestrado ou tese de doutorado que enfoca os quadrinhos sob os mais variados aspectos, sendo aprovada por uma banca de examinadores indicada por um programa de pós-graduação no país, deve ser recebida com regozijo por todos aqueles que admiram o meio.

Felizmente, os últimos anos têm proporcionado muitos momentos desse tipo, com a constante ampliação do número de trabalhos acadêmicos sobre quadrinhos desenvolvidos nas universidades brasileiras. O ano de 2003 foi especialmente bem agraciado nesse sentido, com pelo menos quatro dissertações de mestrado sendo defendidas somente no estado de São Paulo, em diferentes áreas do conhecimento. Uma delas, apresentada ao programa de Mestrado em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, acaba de receber uma versão comercial, lançada durante a última Bienal Internacional do Livro: Spawn, o Soldado do Inferno: mito e religiosidade nos quadrinhos, de autoria de Cristina Levine Martins Xavier.

No ambiente brasileiro, uma análise aprofundada das histórias em quadrinhos em um programa acadêmico de Ciências da Religião é um acontecimento inédito. Mesmo no exterior, o enfoque dos quadrinhos pelo viés religioso não é tão comum, constituindo ainda hoje honrosas exceções os livros de Robert L. Short e D. P. McGeachy III, respectivamente denominados The parables of Peanuts e The Gospel according to Andy Capp. No entanto, comparar essas obras com o recém-lançado livro da autora brasileira seria fazer a esta última uma injustiça: seu trabalho vai muito além de uma análise dos aspectos religiosos de um gibi, constituindo-se, muito mais, em uma ambiciosa abordagem dos aspectos simbólicos e mitológicos presentes na criação máxima do norte-americano Todd McFarlane.

A escolha das aventuras da personagem Spawn como objeto de estudo foi bastante afortunada nesse sentido, pois elas ocorrem em um ambiente marcado por simbolismos e seres sobrenaturais. Enfocam a epopéia de uma agente da CIA que, após sua morte e a celebração de um pacto com um demônio, volta à Terra em uma forma monstruosa, devendo atuar como soldado - um Hell Spawn -, no exército demoníaco. Ao descobrir, que havia sido enganado no pacto que fizera - ele pretendia voltar à Terra para rever sua esposa -, o protagonista recusa-se a cumprir sua parte do acordo, entrando em conflito com o demônio Malebólgia, que o havia recrutado. A partir daí, as aventuras da criatura sucedem-se em embates com seres demoníacos como o Palhaço (ou Violador), o monstro feito de lixo chamado Entulho, o molestador de crianças Billy Kinkaid, o assassino cibernético Overkill e a bela Ângela, um anjo matador de spawns que depois se torna aliada do herói. Ao mesmo tempo em que enfrenta inimigos tão fabulosos, Spawn também busca respostas para o mistério envolvendo sua morte e tenta se reaproximar de sua mulher, agora casada com seu melhor amigo.

Para analisar a série em quadrinhos de Spawn, Cristina Xavier utiliza, com bastante procedência, os subsídios da psicologia e antropologia. Depois de traçar um breve relato biográfico de seu autor e apresentar um panorama geral da trama, conforme narrada nos primeiros 120 números publicados no Brasil, a autora insere a personagem na discussão das idéias de Carl Gustav Jung e dos autores pós-junguianos, comparando suas proposições com as idéias daqueles estudiosos que se debruçaram sobre a questão do mito no mundo moderno, como Mircea Eliade, Junito Brandão e, principalmente, Joseph Campbell. É a este último autor que, depois de situar historicamente as influências de McFarlane para a criação de Spawn - encontrando relação direta com a mitologia greco-romana, o Antigo e Novo Testamentos da religião cristã, os Cavaleiros Templários e a Maçonaria -, que ela retornará, no último capítulo, analisando a saga do Soldado do Inferno à luz dos estágios arquetípicos do mito do herói, propostos por Campbell em seu famoso e clássico estudo O herói de mil faces. Esta análise constitui a parte mais interessante do livro, em que a autora desvenda a personagem em toda sua dimensão simbólica, tornando mais clara a riqueza de seu processo criativo.

Spawn, o Soldado do Inferno: mito e religiosidade nos quadrinhos é uma obra densa, profunda, fruto de uma intensa reflexão intelectual e uma séria pesquisa acadêmica, que certamente dignifica sua autora e traz uma inestimável contribuição ao entendimento de uma obra emblemática nos últimos quinze anos da história dos quadrinhos. Nesse sentido, seu trabalho constitui uma leitura obrigatória e não pode faltar na estante de todos aqueles que se interessam pelo estudo da 9a. Arte. Por outro lado, no entanto, exatamente essa profundidade de análise pode também constituir, ao mesmo tempo, um aspecto adverso, na medida em que implica maior dificuldade para leitura e entendimento de seu texto por parte de muitos amantes dos quadrinhos.

A opção editorial de manter a versão em livro aparentemente idêntica à encaminhada à banca examinadora da dissertação pode não ter sido muito feliz, na medida em que desconsiderou a especificidade (ou generalidade) do novo público. O livro teria lucrado muito em termos de legibilidade se tivesse sido objeto de um atento trabalho de revisão, adotando o modelo do Chicago manual of style citation guide para a indicação de fontes bibliográficas no corpo do livro (indicando autor/data/página) e incorporando - ou simplesmente abolindo -, grande parte das notas explicativas ao final dos capítulos. No caso destas últimas, além de evidenciarem o sério trabalho de pesquisa e a erudição da autora na área de Antropologia, pouco acrescentaram ao entendimento do texto principal (como regra, é sempre importante ter em mente que qualquer informação não essencial ao entendimento da idéia principal de um autor pode ser tranqüilamente omitida, sem qualquer perda para o leitor...). Isto teria ajudado a diminuir enormemente o número de notas bibliográficas do livro - mais de 360 -, e evitaria a lastimável confusão que ocorreu com elas nos últimos dois capítulos, em que a numeração é perdida e várias chamadas numéricas não têm sua correspondente nota bibliográfica ao final do capítulo.

Além desse aspecto não tão favorável, um outro não pode deixar de ser mencionado: embora constitua um excelente trabalho de pesquisa no campo dos estudos mitológicos e sua aplicação à área das histórias em quadrinhos, parece ter faltado ao esforço de investigação de Cristina Xavier um aprofundamento maior na literatura específica sobre quadrinhos, inclusive naquelas que, ainda que não com a mesma profundidade da autora, buscaram um enfoque parecido ao seu. Nesse sentido, talvez constitua excesso de rigor acadêmico exigir que a autora tivesse lido The mythology of superheroes, de Robert Reynolds, por não existir tradução desta obra em português e nem ser ela de fácil obtenção no mercado brasileiro (para referência, saiba-se que o Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP possui um exemplar em seu acervo bibliográfico...), mas o mesmo não se pode afirmar do capítulo denominado O mito do Superman, parte da já antológica obra Apocalípticos e integrados, do pesquisador italiano Umberto Eco, ou de Espelhos míticos da cultura de massa: cinema, TV e quadrinhos na Índia, de Lúcia Fabrini de Almeida, ambos facilmente disponíveis no país. De qualquer forma, o livro ressente-se de um insuficiente aprofundamento na leitura de obras específicas sobre quadrinhos - das 58 referenciadas na bibliografia, apenas uma delas é exclusiva sobre histórias em quadrinhos -, e isto não pode deixar de ser apontado como uma debilidade, ainda que menor.

Também parece ter faltado à autora a contribuição mais efetiva de um estudioso das HQs durante a elaboração da dissertação ou mesmo por ocasião da banca examinadora. Isso teria evitado algumas (poucas) afirmações equivocadas que acabaram passando pela revisão editorial e constando no texto publicado em livro. Futuras edições da obra precisam certamente dedicar uma atenção especial à correção desses pequenos deslizes, principalmente a referência à personagem Spawn como sendo o primeiro herói em quadrinhos de raça negra. Nada poderia estar mais longe da verdade: só no campo dos super-heróis é possível apontar vários predecessores nesse quesito, como Luke Cage, Raio Negro, Pantera Negra, Falcão, para apenas citar alguns.

Estes aspectos menos favoráveis, no entanto, não são suficientes para diminuir o valor do livro de Cristina Xavier para a área de quadrinhos em geral e para os amantes de Spawn em particular. Trata-se de um trabalho muito profundo, com um rigor científico que poucas vezes se encontra no meio, uma seriedade intelectual a toda prova e um potencial de contribuição para o estudo das HQs ainda insuficientemente avaliado. Este potencial é ainda mais expressivo quando se considera também o detalhado resumo dos 120 primeiros números da revista publicados no Brasil, as figuras ilustrativas de capas ou principais coadjuvantes e o glossário de conceitos junguianos incluídos como apêndices ao texto principal, que apenas agregam valor a um ótimo trabalho de pesquisa.

Como pesquisador da área, dou boas vindas à autora, esperando que ela dê continuidade ao estudo dos quadrinhos em um futuro doutoramento, talvez abordando, então, a recepção da personagem por seus leitores, cuja importância aponta em seu livro.

Publicado pela Editora Difusão, de São Caetano do Sul, Spawn, o Soldado do Inferno: mito e religiosidade nos quadrinhos, tem 352 páginas e custa 38 reais.