Fallout 4 | Crítica
Para o bem e para o mal, a Bethesda nunca muda
Há mudanças no sistema de jogo, novas mecânicas foram implementadas e um hiato de sete anos e uma geração de consoles o separa de seu antecessor, mas Fallout 4 é um jogo da Bethesda. Essa afirmação parece óbvia, mas carrega consigo as típicas e cada vez mais indissociáveis qualidades e falhas já esperadas de um título do estúdio.
Para cada mundo aberto colossal que a Bethesda põe à disposição dos jogadores, vêm uma quantidade quase igual de problemas de desempenho. Com o novo RPG da empresa não é diferente: na versão testada (PlayStation 4), a taxa de quadros caiu em diversos combates, os diálogos frequentemente ficavam sem legenda ou demoravam para carregar, deixando aquele incômodo silêncio entre as conversas e, em incontáveis vezes, os companheiros e outros NPCs se comportam de um jeito estranho - enquanto escrevo estas linhas, meu cachorro apoia as patas traseiras na quina de uma mesa e está parado na diagonal.
Mas os bugs e os problemas tornam-se um problema aturável frente a um mundo aberto denso e cheio de detalhes. Fallout 4, assim como as outras gigantescas empreitadas do estúdio americano, tem suas idiossincrasias, principalmente no que diz respeito ao estilo de exploração (muitas vezes, influenciado pelos problemas descritos acima), mas quem se dispor a encarar o desafio vai encontrar na Boston pós-apocalíptica de 2287 - aqui, rebatizada ao longo dos anos de Commonwealth - um recorte meticuloso e profundo do fantástico mundo pós-apocalíptico da franquia, tão diferente e, ao mesmo tempo, tão parecido com o nosso.
Essa dualidade, curiosamente, se aplica também ao sistema de jogo proposto pela Bethesda. Como já havia falado em minhas primeiras impressões, Fallout 4 é familiar a quem conhece a franquia (ou Elder Scrolls, o outro peso-pesado da empresa) logo de cara, mas é também o jogo com a estrutura mais dinâmica e abrangente do estúdio até hoje.
Todo mundo é especial
Neste processo, a mudança mais radical de todas foi implementada na evolução do seu personagem. Acabaram as skills, proficiências específicas que faziam a tela de status parecer uma ficha de RPG de mesa. Elas foram diluídas no sistema de perks, vantagens únicas que você desbloqueia com um ponto concedido a cada nível. Elas, por sua vez, são atreladas ao seu nível e a quantidade de pontos de SPECIAL os sete atributos-base: força, percepção, resistência, carisma, inteligência, agilidade e sorte.
Com a mudança, o jogo dá mais importância a habilidades que, anteriormente, poderiam ser facilmente negligenciadas. Em Fallout 3, focar-se em algumas habilidades-chave tornava a experiência fácil desde o começo e, aqui, a Wasteland não é tão punitiva se você quiser fazer da sorte o seu atributo-base mais alto, por exemplo. Mas se engana quem acha que essa simplificação facilita a aventura. Pelo contrário: cada subida de nível se torna uma escolha difícil, especialmente durante os primeiros passos na temida Wasteland.
Outro grande passo em direção a um game mais dinâmico se deu nas conversas, em outra das mudanças mais aparentes de Fallout 4. Pela primeira vez, o protagonista tem voz, e isto resulta em conversas com escolhas mais simplificadas - poucas palavras, em vez de mostrar a frase inteira -, e jogadas diferentes de câmera dependendo de quem está falando, de forma muito similar ao que a BioWare faz com seus RPGs.
A inovação é bem-vinda, mas sua execução fica aquém do esperado, já que as opções sempre são vagas demais para que se tenha uma noção precisa das conversas. Se a ideia era copiar o estúdio canadense, deveriam tê-lo feito por completo em vez de entregar um sistema em que "ser sarcástico" aparece em mais da metade das opções de resposta.
Passado pré-apocalíptico
Fallout 4 é o primeiro game da saga a começar antes da queda das bombas atômicas, em 2077 e, logo depois da sequência inicial, corta para mais de 200 anos no futuro. A premissa básica de Fallout 3 é invertida e, agora, você emerge da Vault 111, onde você ficou congelado por pouco mais de dois séculos, determinado a se vingar de quem matou seu cônjuge e raptou o seu filho.
Embora a ideia de se ter um personagem fora de seu tempo seja tentadora e combine com o tema geral da série, com sua sátira ao perfeito estilo de vida americano, a missão principal trilha um caminho similar ao de oito anos atrás, com uma trama intimista que, cedo ou tarde, vai de encontro aos grandes mistérios envolvendo facções conhecidas dos fãs e questões que podem definir o futuro da região, mas sem o messianismo de seu antecessor (ainda bem).
Ainda que o jogo tenha uma ótima história, ela empalidece diante da maravilha que é descobrir, por conta própria, os segredos do mapa de Fallout 4. Nos momentos iniciais da aventura, você é aconselhado a ir para Diamond City, o principal povoado do game, mas meu trajeto demorou muito mais tempo do que o normal porque no caminho havia muito o que explorar, seja em forma de side quests, seja em forma de cenários convidativos.
A Commonwealth expande e aprofunda o que já havia de melhor em Skyrim e na Capital Wasteland: é um cenário em que cada localidade parece ter uma história particular, cujos detalhes vão informando, como peças de um quebra-cabeça, o que se passou no mundo após as bombas atômicas. É o tipo de jogo em que, dependendo da sua curiosidade, os logs de segurança de um computador centenário podem contar uma história tão interessante quanto a que você vive em diálogos e escolhas.
O lixo de um homem é o tesouro de outro
Além de tudo isso, Fallout 4 ainda traz consigo um extenso metajogo de construção, que envolve modificação de mapas, armaduras, da sua Power Armor e até mesmo de cenários inteiros. Os recursos necessários para construir, claro, não poderiam vir de outro lugar senão o lixo: é necessário coletar madeira, metal, cola, plástico, adesivos e vários outros materiais, que podem ser "reciclados" dos itens de seu inventário e dão utilidade a praticamente tudo o que você encontra no cenário - incluindo objetos que não passavam de tralhas anteriormente, como pranchetas, copos e afins.
Embora tudo isto seja inteiramente opcional e, aparentemente, voltado a um público interessado em construir e modificar (um perfil abundante entre a comunidade da Bethesda, cujos títulos recebem centenas de mods), sua integração ao restante do jogo é natural. É fácil mexer em cidades, armas e armaduras e aprofundar-se em criar rende benefícios bons demais de serem ignorados.
De certa forma, a Bethesda pegou o conceito de seu vicante título mobile Fallout Shelter e o aplicou no console, com cidades que precisam de água, comida e podem ser expandidas, desde que você tenha os materiais necessários para construir mais camas, estações de rádio para chamar sobreviventes perdidos e defesas contra ataques de raiders ou mutantes. Você também pode construir lojas e certas missões secundárias fazem povoados se aliarem à você, permitindo o estabelecimento de rotas comerciais e desbloqueando alguns dos melhores itens do jogo.
Fallout 4 é o que a Bethesda tem de melhor e pior. É um jogo bugado e ainda construído em cima de alicerces estabelecidos por mais de uma década em diversos games de sucesso, mas também é um jogo cheio de vida, detalhe e que, como poucos, sabe contar uma história valendo-se de uma das características mais importantes dos videogames enquanto meio: a ação do jogador.
Fallout 4 está disponível para PlayStation 4, Xbox One e PC. A versão testada foi a de PlayStation 4.