Em decisão inédita, a 37ª Vara Cível de São Paulo condenou, recentemente, a editora Martins Fontes a pagar 5% sobre o valor de cada exemplar vendido da trilogia O senhor dos anéis a Lenita Maria Rimoli Esteves e Almiro Pisetta, tradutores brasileiros da obra de Tolkien. A empresa, como era de se esperar, recorreu, afirmando que seguiu o procedimento habitual do setor, ou seja, remunerar por empreitada e não por direitos proporcionais às vendas.

O caso é emblemático não só por envolver livros campeões de prateleiras, com significativas repercussões em outras mídias, mas também por tornar públicas questões importantes do ofício do tradutor. Com sua decisão, a 37ª Vara Cível parece entender que traduzir não é apenas copiar um texto de uma língua para outra, mas um procedimento autoral regido, na forma da lei, por direitos semelhantes ao de qualquer criação artística.

Essa resolução não deveria ser causa de tanta surpresa. Afinal, esperar um desfecho diferente é, no mínimo, ignorar os fundamentos do que realmente compõe a tradução.

A todo o momento, a vivência do tradutor se faz presente em seu trabalho, quer ele esteja vertendo uma poesia repleta de simbolismos e jogos de linguagem ou o mais árido dos manuais de eletrônica. Entra em jogo tudo aquilo que influencia a formação deste profissional: seu ambiente, sua época, suas afinidades e preferências.

Como toda obra autoral, a tradução é alvo de incalculáveis fatores. O tempo é um tirano que modifica ou faz sumir termos, gírias e informações correntes, quase tornando obrigatórias diferentes traduções para diferentes épocas. A geografia e suas distâncias conferem ao resultado final uma infinidade de sabores regionais. Desta maneira, não se devem levar a sério críticas a traduções carregadas de paulistês ou de carioquês. Afinal, como esperar que um tradutor nascido e formado em São Paulo ou no Rio de Janeiro, redija como um gaúcho, um pernambucano ou um mato-grossense? Que as queixas se voltem, então, para o verdadeiro vilão: a ausência de traduções regionais de uma mesma obra. É lamentável que a concentração de editoras no eixo Rio/São Paulo nos prive de histórias de Harry Potter, Homem-Aranha ou do Wolverine vertidas por paraenses ou baianos empregando coloquialismos próprios de seus estados.

Na mesma seqüência de raciocínio, cai por terra outra falácia que, de tantas vezes repetida, ganhou ares de verdade absoluta: a tal da fidelidade nas traduções. Ilusório ouro de tolo, é tão improvável quanto o Papai Noel e o Coelhinho da Páscoa. E vou mais longe. Se realmente existisse, essa aclamada virtude seria um veneno nefasto para o prazer da leitura. Evidentemente, sem querer advogar um desprendimento total da obra-fonte, é lícito dizer que o mérito de uma tradução não é seu apego ao texto original, mas a qualidade da redação, o estilo e as soluções criativas que o tradutor imprime ao verter cada passagem. No bom resultado, contam mais a inventividade, a inovação e o engenho, ou seja, os alicerces imprescindíveis de qualquer obra de arte. E quando se fala em arte, está implícita a figura do autor. Portanto...

Nos quadrinhos, a situação não foge à regra. Todavia, diferente do que acontece com livros e artigos, a tradução de gibis e tiras é refém de algumas restrições, principalmente de espaço. O mesmo pode se dizer das dublagens e legendagens de filmes que, além da exígua contagem de letras, enfrentam a inclemência da limitação de tempo. Ante tais desafios, os tradutores devem buscar não só soluções estéticas, mas também superar as limitações impostas pelas mídias em que se especializaram.

No âmbito da nona arte, imagens e balões são traçados prevendo o texto que os completam. Quando recebe a obra, o tradutor tem à sua frente uma situação engessada, destituída das liberdades do roteirista da língua-fonte. Como nem sempre uma versão ocupa o mesmo espaço do letreramento original, impõe-se uma inevitável redução de volume. Há casos em que o formato da edição num país é menor do que o da original. Durante muitos anos, foi esta a norma no Brasil, onde se preferia o confortável formatinho ao desajeitado formato americano.

Sem levarmos em conta todas as belezas e riquezas que a cercam, não é de se surpreender que a tradução seja tão desmerecida e, com lamentável freqüência, entregue ao preço de ocasião dos incompetentes. Afinal, se, como muitos acreditam, não passa de reles transcrição de palavras da língua de partida para a língua-alvo, este ofício é indigno de crédito e de remuneração decente. Então, é de se considerar as vantajosas conseqüências desta forma de refletir a respeito do assunto. Não faltam - e as evidências deixam claro - boas razões para se destituir o artista da tradução de sua mais do que justa condição de autor.

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