The Last of Us | Crítica
Novo jogo da Naughty Dog não é apenas um "Uncharted com zumbis"
Dizem que os pensamentos agem como uma névoa em sincronia que saem de um lugar e vão parar em outro. É interessante o game The Last of Us chegar em uma época em que o caos se instaurou no Brasil entre cidadãos e policiais. Não que isso não aconteça sempre, mas quando toma a proporção dos acontecimentos dos últimos dias, é impossível ignorar. O game da Naughty Dog pode não falar necessariamente de lutas civis, mas no fundo ecoa um pensamento de muitas pessoas: como viver dignamente em meio ao caos?
Em The Last of Us, o caos é representado por um fungo que entrou em contato com a espécie humana e dizimou a sociedade, transformando os infectados em uma espécie de "fungos-vivos". Mesmo com essa premissa específica, desde o começo The Last of Us sugere que o problema vai muito além dos infectados e da busca pela cura. A luta dos protagonistas Joel e Ellie é sobreviver em um mundo devastado há 20 anos, comandado pelo exército. As pessoas vivem sob as ordens autoritárias da força armada, que, entre outras imposições, limita a liberdade de ir e vir.
Intimismo no fim do mundo
A narrativa se desenvolve a partir da progressão afetiva entre Joel e Ellie, cuja relação (para quem ainda não jogou) o game trata como mistério - seriam parentes, vizinhos, conhecidos? Um dos pontos altos de The Last of Us é a mudança constante, por conta da evolução dessa intimidade entre a adolescente Ellie e o velho Joel. Um dos grandes desafios de design de games é tornar crível a relação entre personagens, e a Naughty Dog faz isso bem desde Uncharted, em que personagens como Nathan Drake e Tezin se conectam, embora sequer falem a mesma língua.
Outro ponto interessante é enxergar o mundo pelos olhos de Ellie - uma garota de 14 anos que nasceu durante o apocalipse e não viveu no mundo como conhecemos hoje. Há momentos em que, por exemplo, ela pega um diário perdido em uma casa abandonada e indaga: “Jura que o problema delas era o corte de cabelo, o menino que não olhou pra ela e se a blusa combina com a saia?”. Suas reflexões nos fazem pensar sobre o que nos move hoje, e como Joel diz, “tudo é relativo”.
Ellie, como outras personagens femininas da Naughty Dog, é forte, destemida e carrega uma vontade de mudar o cenário em que vive. Já Joel é um homem com marcas de uma vida sofrida e, em momentos, mostra que já perdeu as esperanças de viver em um mundo melhor. Além de Ellie e Joel, outros personagens também aparecem durante quase todo o jogo, e dão material para a trama progredir em meio a inúmeras cutscenes de computação gráfica bem produzidas.
Animação atrás de animação
Embora a trama seja bem cuidada, um game se prova, de verdade, na questão da jogabilidade. A ação de The Last of Us oferece combates difíceis, amedrontadores e intensos, mas peca pela falta de variedade, já que tudo é relativamente igual do começo ao fim: confrontos mano a mano, com armas brancas ou de fogo e upgrades de habilidades e de arsenal ganhos ao longo do jogo.
Os inimigos - controlados por uma inteligência artificial burra, que muitas vezes passam pela frente do protagonista e não o enxergam - alternam entre policiais do exército, vândalos e humanos infectados há pouco, médio e muito tempo. Esses últimos, grandes e monstruosos, são os mais difíceis e agem como uma espécie de chefe entre as missões. Ainda assim, faltam chefões que realmente deem trabalho. Com animação atrás de animação, o nível de dificuldade é basicamente o mesmo durante todo o jogo, e no fim das contas o jogador só é surpreendido pelas viradas na trama.
O roteiro tem alguns buracos, que servem às vezes para acomodar elementos como os quebra-cabeças. Por exemplo, existem muitas fases em que é preciso atravessar lagos e riachos, e como Ellie não sabe nadar, o jogador, controlando Joel, precisa encontrar uma alternativa para atravessá-la. Mas como uma sobrevivente num mundo caótico, que se defende de monstros, não sabe nadar? A lógica seria Joel ensiná-la a nadar ou esse tipo de quebra-cabeça acontecer apenas uma vez - o que não é o que ocorre.
Os cenários, grandiosos e cheios de lugares secretos para serem visitados, fazem um bom trabalho ao criar um mundo pós-apocalíptico, mas, apesar da linearidade, nunca deixam óbvio onde é preciso seguir. Como base de comparação, é mais fácil resolver os quebra-cabeças do que encontrar o rumo numa fase...
Não deixe passar batido
Assim como nos filmes de Alfred Hitchcock, The Last of Us coloca o jogador em situações de tensão em que, ao avistar uma porta, indica que é preciso ter cautela para desbravá-la: ela pode ter uma centena de infectados ou simples coletáveis. Tudo é sempre uma surpresa. Seja o personagem que se revela, um monstro que sai de um lugar inesperado ou uma arma deixada em uma mesa que pode passar batido.
Apesar de pecar em alguns pontos e ter uma jogabilidade praticamente idêntica a Uncharted, porém com foco em furtividade, o game apresenta uma história rica, que faz o jogador pensar em qual o sentido de viver em um mundo devastado. A Naughty Dog acerta muito em oferecer personagens caricatos, amáveis e com profundo senso crítico - ponto altíssimo para a dublagem em português que contribui para essa caracterização. Não se sabe ao certo como é viver em meio ao caos, mas sabe-se que The Last of Us é um prato cheio de entusiasmo e criatividade para falar sobre o tema.