Free Fire:
5 anos do jogo
que o Brasil
abraçou

Trajetória e impactos do jogo
que pavimenta o caminho entre favela e esports

Helena Nogueira | @helvnog Repórter

As luzes se apagam. Tudo o que se ouve são os gritos da torcida e o eco dos infláveis de plástico sendo batidos um contra o outro. De repente, o som de turbinas rasgando os céus toma conta da arena.

As asas de um avião se estendem pelo telão que preenche quase todo o palco. No clipe de animação, sombras dentro da cabine mostram as feições de ícones da quebrada, o que causa expressões de ânimo no público. A voz de MC Jottapê ecoa um contagiante “e aí família, vamo droppar?”, dando início à celebração mais brasileira dos esportes eletrônicos.

Assim foi um dos momentos mais arrepiantes que já acompanhei nos esports – com certeza, o mais eletrizante. Mesmo quase três anos depois, ainda é possível sentir a energia que tomou conta da Arena Carioca durante a cerimônia de abertura da Final Mundial de Free Fire de 2019, realizada no Rio de Janeiro.

Com Mano Brown no palco e Corinthians levantando o caneco de campeão mundial, acompanhar a inesquecível disputa foi ver a favela em festa, ocupando seu lugar no palco.

Neste aniversário de cinco anos do battle royale da Garena, lançado em 23 de agosto de 2017, o Mundial de 2019 se mostra ainda mais representativo da dimensão que o jogo tomou no Brasil, responsável por pavimentar o caminho entre a favela e os esports.

Cesar Galeão e Felipe Guerra

O Brasil para Free Fire

A fórmula é simples, mas move milhares de pessoas ao redor do globo. Em uma ilha, 50 jogadores têm cerca de 10 minutos para batalhar e ficar entre os últimos sobreviventes. Avançando em equipes de até quatro pessoas, é preciso atirar, saquear, esconder-se e ficar dentro da zona segura para conquistar a vitória e ler “Booyah!” na tela.

Free Fire pousou no Brasil em novembro de 2017, quando teve início o período de testes do game com o beta aberto. Menos de um mês depois, em 4 de dezembro, o game foi lançado oficialmente no país com um servidor dedicado próprio.

Não demorou muito para que os brasileiros tornassem o jogo um fenômeno. Mesmo passados quase cinco anos após a chegada em solo nacional, Free Fire se mantém na 5ª colocação dos jogos mais rentáveis do Google Play. O battle royale soma mais de 1 bilhão de downloads na plataforma, sendo o primeiro do gênero a alcançar esse feito.

Na App Store, o título ainda ocupava, até a publicação desta matéria, o top 5 dos jogos gratuitos mais baixados. Apenas no primeiro trimestre de 2022, foram mais de 71 milhões de downloads somados em ambas as lojas.

Ultrapassando barreiras pela tela do celular, Free Fire se consolidou como uma potência no país também para a criação de conteúdo. Quase todos os anos desde o lançamento, o jogo se destaca entre os líderes de audiência do YouTube no Brasil.

Em 2021, a transmissão da final do Mundial de Free Fire foi o vídeo mais assistido pelos brasileiros. O FLUXO, organização de Bruno “Nobru” Goes e Lúcio “Cerol” dos Santos, foi o quarto canal do Top Criadores da plataforma, somando 2.79 milhões de seguidores. Outro nome da lista é Piuzinho, que atualmente possui 12.5 milhões de seguidores.

Em comunicado ao The Enemy, a Garena reconhece o Brasil como detentor de uma comunidade que oferece “suporte e envolvimento tremendo” para o jogo. De acordo com a empresa, a manutenção do game no país contempla a promoção do game como plataforma social global duradoura, oferecendo “conteúdo de alta qualidade e engajando com sua comunidade global por meio dos esports”.

Divulgação/CUFA

Free Fire para o Brasil

Não se sabe quanto do sucesso global de Free Fire foi, de fato, planejado. Sendo esse impacto premeditado ou não, é incontestável que o Brasil abraçou o jogo como nenhum outro país no mundo.

Para Luiz Queiroga, consultor de esports, diversidade e inclusão, o jogo ganhou uma dimensão social no país: “O Free Fire representa o Brasil brasileiro. O Brasil real. Ele conseguiu romper barreiras que o cenário de esports no geral não rompeu — ou não faz questão de romper”.

O game da Garena é relativamente leve — são necessários 1.3 GB de armazenamento e 1GB de memória RAM para rodá-lo, de forma que pode ser reproduzido em quase qualquer celular. Isso significa que, dentro do possível, muitos podem jogá-lo. Na opinião do consultor, é por isso que “Free Fire representa o gamer brasileiro de verdade”.

“É jogado pela periferia: os caras pretos, as minas [sic], o pessoal que está marginalizado como um todo. Para mim, Free Fire é social — por mais que sinta que isso foi mais um acaso do que realmente uma estratégia. Não é que Free Fire foi programado para ser do povo. Ele é um jogo leve que o povo abraçou”.

Nobru, astro que alcançou o título de “Neymar do Free Fire” com sua trajetória vitoriosa no competitivo, opina que o battle royale aproxima, interliga e empodera a periferia.

“O fato de poder rodar em qualquer smartphone, Android e iOS, dos mais baratos até os mais caros, e sem a necessidade de consumir muitos dados 4G, torna o jogo mais democrático. Isso possibilita que qualquer jogador, com qualquer condição financeira, possa ganhar.”

Em junho, Anitta contou ao The Enemy em coletiva de imprensa que vê Free Fire, funk e futebol como “coisas do mesmo mundo”, por promover inclusão social e alavancar a favela.

“Acho importante que a gente sempre dê visibilidade e profissionalize essas pessoas, para que elas não escutem mais os comentários daqueles que estão acostumados com as coisas como eram antigamente. O povo fala ‘Isso daí é brincadeira, não é profissional’. E existe, sim, um mundo imenso de profissionais da modernidade, das coisas que já são o futuro. (...) Para mim, esses são os novos profissionais do entretenimento. São coisas acessíveis para quem mora na favela, possibilitando que a pessoa mude de vida — assim como o funk faz, como o esporte pode fazer também. São coisas do mesmo mundo.”

São coisas acessíveis para quem mora na favela, possibilitando que a pessoa mude de vida — assim como o funk faz, como o esporte pode fazer também. São coisas do mesmo mundo.
FF Anitta
Anitta

A quebrada nos esports

Ressoando o abalo sísmico do jogo no país, foi apenas natural que Free Fire se estabelecesse por aqui também como um dos pilares do esporte eletrônico.

Logo no primeiro ano de campeonatos oficiais, em 2019, o battle royale bateu três recordes de audiência consecutivos no YouTube. O mais alto deles aconteceu em novembro, com impressionantes 1.2 milhões de espectadores simultâneos durante a final do Mundial no Rio de Janeiro. Uma semana antes, também na capital carioca, as finais da Temporada 3 da Pro League ultrapassaram 1 milhão de espectadores simultâneos. Antes disso, em julho, a conclusão da Temporada 2 teve 736 mil espectadores simultâneos.

A partir do ano seguinte, a Liga Brasileira de Free Fire foi introduzida com a missão de dar sequência ao sucesso estrondoso. Desde então, foram oito temporadas competitivas — com a oitava marcada para ser concluída no mês de outubro.

A princípio, o torneio conseguiu manter seu domínio. Ofuscando outros nomes tradicionais, como o Campeonato Brasileiro de League of Legends, houve êxito em chamar a atenção do restante do cenário. De acordo com a Pesquisa Games Brasil 2021, a LBFF foi a competição mais assistida em 2020, sendo que cerca de 35% dos consultados afirmaram que acompanharam a liga com frequência.

Cesar Galeão e Felipe Guerra
Cesar Galeão e Felipe Guerra


249 JOGADORES E 37 EQUIPES

PASSARAM PELO COMPETITIVO NACIONAL DE FREE FIRE, DE ACORDO COM A GARENA

LOUD, B4, VIVO KEYD E CORINTHIANS

SÃO OS TIMES QUE MAIS PARTICIPARAM DO TORNEIO, PRESENTES DURANTE AS OITO TEMPORADAS


Desde então, a principal competição da Garena tem mostrado sinais de estagnação. A LBFF 6 fechou o ano de 2021 com pico de audiência de 413 mil espectadores simultâneos – nem metade do alcançado pelas finais da última Pro League de 2019.

Com o retorno da final presencial na LBFF 7, porém, a transmissão do torneio ganhou certo respiro, registrando 960 mil espectadores simultâneos em todas as plataformas de exibição, de acordo com a empresa.

Ao longo dos quatro anos de existência, o cenário de Free Fire contou com nomes vindos da favela que brilharam no competitivo e se estabeleceram como vozes importantes da comunidade no meio mainstream. São nomes como o próprio Nobru, Carlos César “Fixa”, com quem conquistou o Mundial pelo Corinthians em 2019, e Pedro “Peu” Landim, que inspiram outros meninos e meninas a perseguirem a carreira como pro players.

“Free Fire já está no imaginário da periferia, é o jogo que de fato mudou o patamar dos esports no Brasil ao se conectar à verdadeira potência brasileira que é a favela”, comenta Queiroga. “Hoje, o jogo conseguiu validar o discurso de que ‘moleque de favela quer ser pro player e não mais jogador de futebol’, abrindo portas para que gente da quebrada seja empoderada e impactada por torneios amadores e sociais como a Taça das Favelas e as ligas de acesso. O Free Fire pavimenta esse caminho. Com todas as dificuldades e a exclusão que ainda existe, sim, mas o Free Fire de fato consegue usar seu papel social para empoderar e tirar essa criançada da rua.”

Ainda assim, o especialista questiona o espaço ocupado pelo game em relação aos demais cenários competitivos.

“Free Fire sofre muito preconceito. O LoL e Dota são rivais, CS:GO e Valorant são rivais, e é impressionante como todas as comunidades competitivas odeiam o Free Fire. Não é nem rivalidade, é ódio mesmo, e isso se dá por questão classicista e de desigualdade social. O Free Fire chegou e causou o mesmo efeito que o ‘rolezinho de shopping’, ocupando e promovendo choque de realidade. Já o cenário de esports é sustentado pela exclusão, e isso é sintomático do país. O esporte eletrônico não está descolado da realidade do Brasil, e o Brasil é um país que condena e não respeita a favela.”

Bruno Alvares e Cesar Galeão

A empresa também promove torneios de fomentação de um competitivo mais diverso, como a Taça das Favelas e a Taça da Patroa — a segunda, realizada em parceria com a Anitta. Durante a coletiva de imprensa com a cantora, ela comentou que sua intenção com o torneio é promover a presença e o respeito às mulheres.

“Acho que não só nos jogos online, mas nos jogos em geral, sempre existe muito preconceito, falta de espaço e de respeito em relação às mulheres que querem estar em coisas que sei lá quem definiu que são ‘de homem.’ Como no futebol e no esporte, os jogos online passam por essa mesma situação. (...) Para mim, [a Taça das Patroas] tem a ideia de estimular e mostrar que as mulheres arrasam muito jogando. E também, para mim, esse é o novo entretenimento — o mundo gamer, dos jogos online. Por isso, nada mais justo do que dar a devida relevância e o devido espaço.”

Mesmo no contexto apresentado, a desenvolvedora e as organizações do cenário deixam a desejar em relação a movimentos de inclusão mais afirmativos, de forma a fornecer condições parelhas para os competidores no ambiente em que Free Fire está inserido.

Um caso que demonstra a barreira estrutural ainda existente no cenário competitivo do battle royale aconteceu em Manaus, no início de 2021. Durante a disputa no Grupo de Acesso da série A da LBFF, a equipe AmazonCripz foi prejudicada após ficar sem acesso à internet. Assim, os competidores foram forçados a disputar o restante das partidas dentro de um carro usando o 4G de seus celulares e, não surpreendentemente, não conseguiram a classificação.

“A Garena não abraçou como poderia abraçar o fato de esse ser realmente um jogo de inclusão, um game que procura romper barreiras sociais”, critica o consultor. “Seria essa uma obrigação da Garena e das marcas que estão nesse circuito? É o famoso sim e não. Por ser um jogo que assumidamente está trazendo uma galera marginalizada, acho importante ter essa atenção, porque é uma galera que entra no cenário de esports e o cenário não está pronto para ela.”

Enquanto, por um lado, o mercado decepciona ao não investir em real inclusão digital, a mudança tem sido promovida pelos próprios craques do jogo. É o caso de Nobru e Cerol, que, à frente do Fluxo, fizeram o investimento social ao instaurar seu próprio instituto que promove apoio à comunidade periférica.

“Os games superaram as barreiras de qualquer preconceito e hoje são capazes de transformar vidas, gerando novas possibilidades de carreiras”, destaca Nobru. “Essa inclusão é extremamente importante, pois, dessa forma, os jovens entendem que podem ter mais uma chance de seguir uma carreira promissora em algo que faça sentido para eles. Aconteceu comigo, e fico muito feliz em poder servir de exemplo para que cada vez mais pessoas possam seguir em busca de seus sonhos.”

Essa inclusão é extremamente importante, pois, dessa forma, os jovens entendem que podem ter mais uma chance de seguir uma carreira promissora em algo que faça sentido para eles. Aconteceu comigo, e fico muito feliz em poder servir de exemplo para que cada vez mais pessoas possam seguir em busca de seus sonhos.
Nobru
Nobru
Selma Souza / Voz das Comunidades

A favela venceu com o Free Fire?

Contemplar a trajetória de cinco anos de Free Fire é, sim, se deparar com a dimensão social e o apelo do jogo para uma camada social quase não contemplada pelos games e esports. Contudo, será que, de fato, a favela venceu com o battle royale?

“Meninos e meninas conseguem ter Free Fire no celular, mas não têm internet para disputar competitivamente”, argumenta Queiroga. “Têm que ir até a rodoviária ou à vizinha para poder jogar, ou então não conseguem participar do treino porque está tendo operação policial na favela onde moram. Não acho que por meio do Free Fire a favela venceu. É muito importante que as empresas, da publisher aos patrocinadores, se atentem cada vez mais a esse contexto. Não podemos esperar que Peuzadas surjam ao acaso.”

“O mercado pega essa exceção e coloca como algo normalizado e vendido, para que todo mundo compre a ideia de inclusão sendo que não há interesse de incluir de fato. Fico preocupado com a forma como o cenário em geral vê o Free Fire, porque usam ele como desculpa para não investir dentro da favela”, continua o consultor.

Seguindo uma lógica capitalista, o investimento em diversidade, de fato, seria de interesse para as empresas envolvidas pelo potencial expressivo de lucro que reside na periferia. Em 2021, dados levantados pelo Instituto Data Favela apontam que mais de R$ 119 bilhões são gerados pela economia da favela por ano, um valor que supera a economia de 21 dos 26 estados brasileiros (via Agencia Brasil).

Outra pesquisa do Instituto em colaboração com a CUFA (Central Única das Favelas) mostra que 96% das crianças de até 15 anos entrevistadas querem se tornar profissionais dos games. Para 29% delas, tornar isso uma carreira representa o maior sonho de suas vidas (via Terra).

Quando perguntada se enxerga o Free Fire como ferramenta de inclusão social e eletrônica no Brasil, a Garena afirma que “acredita em apoiar e capacitar as comunidades locais”, mencionando a Taça das Favelas como uma das iniciativas inclusivas da empresa no país.

Sobre o futuro do jogo, a publisher diz que, além de promover maior acesso, pretende “construir comunidades em todo o mundo, especialmente por meio de eventos de esports”, pois eles “reúnem pessoas de todas as esferas da vida, que têm uma paixão comum por jogos.”

Modelo de espelho, nomes como Cerol injetam ânimo e inspiram meninos e meninas Brasil afora — é o caso do garoto que, enquanto vendia doces no farol, reconheceu o influenciador, como relembra emocionado em entrevista.

Ainda que os desafios estruturais ainda sejam inúmeros, talvez o maior Booyah de Free Fire sejam os ícones que alavancou; aqueles que, de fato, pavimentam caminho para que outros venham a seguir.

Publicado 16 de Setembro de 2022
Repórter: Helena Nogueira | @helvnog
Projeto Gráfico: Jessica Justino | @pipocaartistica
Editor-Chefe: Rodrigo Guerra | @guerra
Editor: Diego Lima | @diego_sdl