O último fim de semana foi agitado para os fãs brasileiros de eSports. Mas, surpreendentemente, o acontecimento mais emocionante não foi em campeonatos de Counter-Strike: Global Offensive ou de League of Legends. O game em destaque foi Dota 2, que, apesar de ser popular no país, nunca teve um cenário à altura dos principais esportes eletrônicos aqui no Brasil.

A responsável pelo feito foi a SG e-Sports, a primeira equipe nacional a participar de um campeonato oficial da Valve, produtora do game. Fundada no final de 2016, a SG é relativamente nova dentro do eSport brasileiro. Mas os nomes que compõem a divisão de DotA 2 misturam-se entre a velha guarda e os talentos mais recentes do cenário.

Juntos, eles conseguiram algo inédito: derrotaram com força um dos melhores times da Europa, colocaram medo em uma das organizações mais antigas da América do Norte e faturaram quase R$ 400 mil pela quinta colocação no Kiev Major.

Há muito o que contar sobre esse desempenho histórico. No entanto, além disso, há muito o que contar sobre o que a SG e-Sports teve de superar até chegar ao ponto de tamanho prestígio internacional.

A mágica do ping baixo

"Dá pra dizer, claro, que a SG fez algo que nenhum outro time brasileiro fez, mas a gente tem pouco exemplo de time brasileiro jogando lá fora nesse quesito de ping", conta ao Omelete o narrador Bruno "mortaaTV" Santos, um dos mais antigos do cenário, que acompanhou o game desde a transição do DotA original para o título da Valve.

A distância física sempre foi um problema para a comunidade de DotA desde os tempos em que o jogo era apenas um mod de Warcraft 3 por conta do ping, ou latência, que é o tempo que um pacote de dados leva para ir a um destino e voltar.

Quanto maior a latência, maior o atraso para realizar suas ações dentro de um jogo. Por precisar jogar em servidores localizados em outros continentes, os brasileiros acabavam competindo com um ping (ou latência) mais alta, o que significava que eles sempre estavam um passo atrás na hora de ver os movimentos de seus oponentes e por isso, nem sempre podiam reagir de forma adequada.

Historicamente, foram poucas as chances dos times daqui competirem contra os melhores do mundo. Quando isso aconteceu, a oportunidade nunca passou sem que os brasileiros sentissem na pele o quanto a falta de prática em uma latência baixa era prejudicial para os resultados.

A própria SG e-Sports teve poucas experiências lá fora antes de Kiev. No início do ano, eles jogaram a World Electronic Sports Games 2016 em Changzhou, na China. Eles passaram da fase de grupos, mas foram eliminados pela Alliance e terminaram entre o quinto e o oitavo lugar.

Para contornar este problema, a SG fez um período intensivo de treinos na Polônia. "Eles já haviam se beneficiado do bootcamp no Brasil para melhorar a sinergia e qualidade da comunicação", lembra o narrador Fabio "Shaolin" Madia. "Porém, ao passar algumas semanas na Polônia antes do campeonato, eles puderam se acostumar com o fuso horário e praticar muito nas partidas ranqueadas da Europa para manter a habilidade individual em dia. Vários deles figuraram no top 200."

Para Shaolin, entretanto, a maior vantagem foi poder treinar com equipes de nível mais elevado. "Estando lá, treinar contra as grandes equipes europeias ficou muito mais fácil, não sofrendo do problema da diferença de horário com relação ao Brasil", comenta. "O problema de ping também foi eliminado e como os jogadores contaram, teve equipe conhecida que ficou surpresa e nao aceitou perder em treino pra eles exigindo outras partidas."

Por sua vez, Morta reforçou que os treinos lá fora serviram para dar ainda mais confiança para os brasileiros. "Dá pra ver pelo bootcamp e pelos streams que eles tinham a exata noção de que eram muito bons e, se eles fizessem no torneio o que eles faziam nos treinos, daria tudo certo", argumenta.

O "senário" e a falta de torneios no Brasil

Na premiação, é possível ver a disparidade entre os cenários mundial e brasileiro do jogo. Só com a participação em Kiev, a SG e-Sports já lucrou duas vezes mais que os times de DotA 2 da paiN Gaming em todas as suas participações em torneios nacionais e internacionais desde 2012. Este dado reforça outro problema direto da comunidade nacional: a falta de torneios e grandes bonificações dentro do Brasil.

"Na minha opinião, e acredito que seja a opinião de grande parte dos praticantes de DotA 2 competitivo no Brasil, o que não permitiu o crescimento da modalidade é ainda o mesmo problema que existe atualmente: a falta de profissionalização da categoria 'cyberatleta', a falta de regulamentações e de compromissos de todas as partes envolvidas", explica Gabriel "Fuji" Fujiyama, CEO da T Show e ex-jogador profissional de DotA 2.

Na opinião de Fuji, há muito o que melhorar no cenário brasileiro do game. "Partindo de campeonatos que não pagam com as obrigações dentro do prazo de prêmios e ajudas previstas em contrato ou jogadores que chegam a ser anti-profissionais", critica, citando ainda que muitos jogadores não respeitam os companheiros e isso desanima o público.

"Eu já tive o desgosto de ir em alguns campeonatos presenciais de DotA 2 aqui no Brasil onde havia 300 cadeiras disponíveis para o público e apenas 20 espectadores. E, dentre eles, cinco eram jogadores do próprio campeonato. Chega a ser ridículo, não acha?", lembra. "Patrocinador é o cara que quer retorno financeiro, se não tem público não tem patrocinador porque ninguém vai ver sua marca."

O futuro

Para contornar a situação, é possível que a própria SG opte por se estabelecer e participar nas competições fora do país, como fez a SK Gaming no Counter-Strike: Global Offensive. "Muita gente quer que o time saia do cenário brasileiro", lembra mortaaTV.

"No cenário um, a SG é contratada por um time de fora ou a própria SG se estrutura e vai para o exterior, como nos Estados Unidos. Ou eles ficam aqui e nós temos duas exponenciais do cenário", comenta, explicando que a Valve pode ou não dar mais enfoque à região sulamericana nos próximos eventos grandes.

Já Shaolin espera mais movimentação no competitivo brasileiro, inclusive trazendo mais campeonatos internacionais. "Com a belíssima apresentação da equipe, eu diria que a Valve vai considerar uma excelente escolha ter dado uma vaga para a região da América do Sul e manter isso para futuros Majors", explicou, citando também outros torneios grandes que não envolvam oficialmente a Valve.

"Naturalmente, times de outros eSports olharão para esse espaço e podem entrar no Dota 2, visto que, com tão pouco espaço e apoio, conseguimos chegar no top 8. Transmissões em português também tiveram recordes de audiência e todos os lados que trabalham com eSports no Brasil ganham, pois deve aumentar a quantidade de times amadores participando de campeonatos que virão por aqui", explica Shaolin.

A mesma esperança é compartilhada com Fuji, que inclusive conta com uma equipe que subiu recentemente para a primeira divisão do Campeonato Brasileiro de League of Legends.

"Espero realmente que, com a conquista da SG em Kiev, novas grandes empresas e investidores olhem para nossa região com outros olhos e que comecem a investir, já que boa parte do público deu uma despertada e isso pode realmente criar um cenário mais sólido a partir deste ano", espera. Um cenário que, inclusive, é almejado para ser representado novamente pela T Show.

"Só conseguimos atingir o resultado desta vez graças ao excelente trabalho da diretoria da SG, ao amadurecimento dos próprios jogadores que já tinham toda uma bagagem de problemas e frustrações, e é claro, o principal, a Valve, que desta vez atuou como o "órgão" e cedeu uma vaga do Major para nossa região", agradece Fuji.