Hideo Kojima, Death Stranding e a questão de autoria nos games

O que a estratégia do "autor único" diz sobre a posição que o videogame ocupa na indústria cultural atual?

Por Beatriz Blanco 16.10.2019 16H54

No último dia 22 de setembro, um tweet do game designer Hideo Kojima gerou muita repercussão por dar a entender que estava menosprezando a equipe de desenvolvimento de Death Stranding.

A polêmica surgiu porque no post ele afirma que sua já famosa assinatura "A Hideo Kojima Game" significa que foi ele o responsável por praticamente todas as etapas de produção do jogo como conceito, roteiro, ambientação, game design, elenco, balanceamento de dificuldade, divulgação, direção de arte, etc.

Os posts em inglês de Kojima, em geral, são versões dos originais em japonês, e
posteriormente foi esclarecido (via Kotaku) que o tom arrogante é resultado de uma tradução equivocada de um verbo japonês que originalmente tem o sentido de "se envolver, participar" pelo verbo em inglês "do", que significa "fazer".

Mas de qualquer forma, o perfil de pop star de Kojima — e seu gosto por ideias e publicidade grandiosas — acabaram dando mais combustível para supor que o tweet, mesmo com o erro esclarecido, talvez não fosse tão distante da visão do diretor. E toda a confusão acabou tocando em um ponto que tem um histórico sensível no debate sobre o videogame como mídia: a ideia de autoria.

Autoria e arte nos games

Em 2005, o renomado crítico de cinema Roger Ebert publicou uma resenha bastante negativa do filme de Doom, em que dava a entender que considerava os jogos digitais como uma mídia menor em relação ao cinema.

O texto provocou respostas negativas de fãs e profissionais da indústria de games e, em uma série de respostas publicadas em seu blog entre 2005 e 2010, Ebert afirmou abertamente que videogames não podem ser arte porque a interatividade desta mídia tiraria do autor seu total controle sobre a narrativa, e portanto, seu valor artístico.

Existem muitos pontos a serem criticados nessa afirmação, como um desconhecimento da linguagem interativa dos jogos digitais, uma definição totalmente arbitrária do que seria arte, e a ideia de que o quê consideramos ou não arte é uma questão de adequação a uma certa linguagem artística, quando ela tem muito mais a ver com status social de
determinadas mídias em relação às outras.

Porém, a confusão sobre o status de arte do videogame é interessante para discutir o tweet recente de Kojima, já que o próprio participou dos debates sobre as afirmações de Ebert na época, afirmando que também não acreditava que o videogame seria arte por motivos semelhantes.

Nas palavras do próprios game designer (via Eurogamer):

"Arte é algo que irradia o artista. Se 100 pessoas passam por ela e apenas uma única é cativada por o que quer que seja que aquela peça irradia, isso é arte. Mas videogames não estão tentando cativar uma única pessoa. Um videogame deve garantir que todas as 100 pessoas que jogarem aquele jogo devem apreciar o serviço oferecido por ele. Não é arte. Mas eu acredito em uma forma artística de proporcionar um serviço com aquele videogame, uma forma de arte."

A afirmação de Kojima aqui é relevante porque é possível ver nela a valorização da autoria única no sentido de "irradiar o artista" — que lembra o tweet sobre estar presente em todas as etapas de Death Stranding. Ela também mostra a participação do designer em um momento muito interessante da história recente dos jogos digitais: o forte movimento de reivindicação do status de arte por parte dos profissionais dos games, que era relativamente inédito naquele momento já que isso não foi uma preocupação tão relevante dos mesmos nos
primeiros anos da indústria.

Em sua análise do episódio com Ebert, o pesquisador Felan Parker afirma que ao mesmo tempo em que a polêmica se tornou um episódio representativo da desvalorização dos games por segmentos da mídia tradicional, ironicamente foi também é considerada um marco do reconhecimento dos games como arte pelo status quo, principalmente por ter mobilizado tantos nomes famosos de variadas mídias na defesa dos jogos digitais.

A partir disso, é possível pensar também sobre como a opinião de um crítico que afirmava abertamente não consumir games e não ter interesse neles — e portanto poderia ter sido simplesmente ignorada como irrelevante — foi uma catalisadora tão importante simplesmente por sua associação com o cinema, uma mídia com mais status social.

Parker também analisou as respostas em defesa dos games durante os debates com Ebert e concluiu que não só elas muitas vezes eram tão superficiais quanto os ataques do crítico como também entravam em um caminho de argumentação semelhante ao tentar aproximar o videogame do cinema para negar o suposto afastamento entre as mídias defendido por ele.

O problema dessa estratégia é que, mesmo de forma não intencional, ela
acaba reforçando a ideia de que o videogame precisa do cinema para se validar. E sobre aproximação entre videogame e cinema fica difícil não lembrar novamente de Hideo Kojima.

O cinema como estratégia de validação

Hideo Kojima/Reprodução

Kojima é conhecido por abusar das longas cutscenes e das referências ao cinema na estética dos seus trailers e materiais de divulgação, mas precisamos reconhecer que ele está bem longe de ser o único na indústria a buscar essa aproximação.

Você provavelmente já deve ter ouvido, e usado, a famosa frase "a indústria de games hoje fatura mais que a de cinema" na hora de defender seus joguinhos de alguma crítica. Posso citar uma série de outros exemplos aqui mas, para ficarmos em um mais recente, vale lembrar que o grande momento da E3 2019 foi a entrada do ator de cinema Keanu Reeves no palco do evento.

Este texto é pouco para discutir as aproximações e diferenças entre os games e o cinema, e apenas quero ressaltar que elas existem (e é possível ler um pouco sobre nos trabalhos das pesquisadoras brasileiras Dulce Márcia Cruz e Renata Gomes, entre muitos outros), mas é preciso cautela para não forçar um encaixe dos games em teorias e técnicas que não são feitas para eles. Porém, podemos olhar para a própria trajetória de validação do cinema para refletir um pouco sobre esse movimento nos jogos.

Microsoft/Reprodução

Quando os games surgiram, nos anos 70, o cinema estava passando pela consolidação de uma mudança de paradigma do cinema de estúdio para o cinema de autor. Nas primeiras décadas da indústria, o diretor trabalhava mais como um funcionário dos grandes estúdios do que como autor, e eram os produtores que planejavam todo o filme a partir do que acreditavam
ter mais potencial de bilheteria.

Mesmo assim, alguns diretores conseguiam se destacar por seu estilo, mas não era exatamente isso o que se esperava deles. Após a geração de críticos franceses da nouvelle vague nos anos 50 criarem o termo cinema de autor, e cineastas ligados à contracultura dos anos 60 e 70 promoverem uma renovação na forma de concepção dos filmes, o diretor se consolidou como criador e responsável intelectual quase exclusivo — Ainda que, assim como o videogame, o cinema seja uma mídia bastante coletiva.

Os videogames parecem estar, de certa forma, copiando esse movimento do cinema com os debates pós-2000 sobre o valor artístico do videogame independente como um tipo de "evolução" do videogame mainstream. O documentário sensação Indie Game - O Filme enfatiza e romantiza muito as figuras dos jovens criadores solitários batalhando contra dificuldades da indústria e atingindo sua redenção triunfante com o sucesso comercial dos seus projetos, o que está mais para uma exceção do que para a regra no videogame independente.

Curiosamente, essa narrativa do independente que luta contra todas as dificuldades para o sucesso parece ser exatamente a que Kojima, apesar dos erros de tradução, tem adotado ao falar sobre Death Stranding, como neste outro tweet em que se coloca como independente mesmo já sendo famoso e contando com muito investimento externo para seu jogo.

Olhando por essa perspectiva, é possível entender a declaração de Kojima sobre sua participação em todas as etapas de produção de Death Stranding como parte dessa manobra de aproximação tanto com a figura de um diretor do cinema de autor, quanto com o heroico desenvolvedor independente, e conquistar a validação artística trazida por essa proximidade, já que o mesmo declara não acreditar que os jogos são arte mas que podem ser feitos de "uma
forma artística". O que nos leva para a próxima questão.

Mas videogame é arte?

PlayStation/Divulgação

O debate sobre o status de arte do videogame continua e se confunde com o debate sobre o quê seria arte afinal. Podemos dizer que com variedade de mídias ganhando as galerias e museus hoje, seria puro elitismo não admitir o videogame entre elas, e para uma ótima discussão sobre videogames e estética, recomendo o livro sobre o tema escrito pela pesquisadora brasileira Julia Stateri.

Por outro lado a carga elitista e limitadora do status de arte não parece ser algo muito atraente para os videogames hoje, como a game designer e pesquisadora Thais Weiller expõe neste texto.

Não tenho a pretensão de resolver essa questão, apenas de chamar a atenção para o fato de que o status de arte do videogame diz muito mais sobre o status social que os jogos digitais estão conquistando nos últimos anos do que sobre suas características como linguagem expressiva.

Aproximar-se da arte é uma manobra estratégica de diferenciação, muito adotada entre produtores e críticos de jogos indie hoje, e como tal também está sujeita a riscos muito semelhantes aos da aproximação com o cinema, como a manutenção da desvalorização dos games "não artísticos", o apagamento das equipes de desenvolvimento ofuscadas pela imagem de um diretor autor, e a criação de um nicho que não dialoga com o resto da indústria, e principalmente com o público.

Retomando a citação de Kojima no debate com Ebert, acredito que ele veja essa aproximação como o caminho para o que game designer chama de "uma forma artística de proporcionar um serviço", sendo uma estratégia de diferenciação para Death Stranding e para sua imagem de game designer autor. Porém, a aproximação do videogame com a arte tem outras potencialidades além do
status e promoção.

Um exemplo é o trabalho do Game e Arte, estúdio brasileiro formado por
Tainá Felix e Janderson Souza que por meio da arte consegue acessar espaços em que o videogame comercial, ainda muito limitado pelos estereótipos da cultura gamer, raramente alcança.

Quando pensadas para além das estratégias de publicidade, novas formas de autoria nos jogos eletrônicos são muito bem vindas, e o videogame independente autoral é uma realidade, embora bem longe de superproduções como Death Stranding, com contribuições que visam muito mais a criação de espaços coletivos para a produção de jogos do que para a glamourização de um único autor.