"No grau": games de carros rebaixados e paredão fazem sucesso no celular
Cultura do tuning brasileiro ganha foco em games mobile como Rebaixados Elite Brasil e Carros Nutallo BR
Nas ruas vazias de um bairro brasileiro de periferia, o grave da música ecoava.
O carro — algum modelo de Celta —, encontrava-se em um amarelo ouro, para além do grau. A saia quase beijava a pista, iluminada pelo néon verde que emanava por debaixo do veículo. O xenon, também verde, era capaz de cegar qualquer um. Completamente azul, o jogo de rodas era tão grande que malemal se via a espessura dos pneus. Internamente, os alto-falantes quase saltavam à caixa estampada e contornada pela luz de um rosa extravagante.
O veículo deslizava no asfalto como uma patinadora russa, deixando como rastro apenas a marca do pneu e o grave inconfundível. Quem dirigia? Os vidros espelhados em azul do Celta não permitiam identificar.
Esse foi um da dezena de carros que deixei "no grau" em Rebaixados Elite Brasil, jogo gratuito para celular que mistura a cultura do paredão de som e do tuning em um cenário tipicamente brasileiro.
Os números traduzem a popularidade da produção brasileiríssima: só a versão de Android contabiliza mais de 10 milhões de downloads, segundo dados da própria Play Store. O jogo do grupo maranhense Sebby Games, que tem até uma edição online chamada Carros Rebaixados Online, não é o único com essa pegada.
Com uma simples busca na loja de apps do Android, é possível encontrar um número considerável de títulos dessa categoria (todos grátis), como Carros Nutallo BR, Carros Rebaixados Brasil e Carros Socados Brasil. Assim como nos nomes, os games compartilham bastante similaridades e seguem uma fórmula que, ao que tudo indica, está dando certo. Juntos, os principais jogos desses grupos somam mais de 25 milhões de downloads.
Sem impor estruturas de missões, fases ou objetivos, os títulos simplesmente oferecem aos jogadores um leque variado de veículos nacionais, opções de customização e sons automotivos personalizáveis, mapas inspirados em bairros brasileiros (em especial periféricos) e a possibilidade de reproduzir músicas, com opção de alterar o nível do grave em determinados casos.
Não há NPCs e controlamos apenas um personagem. Aparentemente, isso é mais do que o suficiente.
Apesar de muitas vezes parecerem um tanto "truncados" ou uma versão em menor escala de Grand Theft Auto e jogos similares, esses títulos têm um trunfo: a capacidade de diálogo com uma larga parcela do público de games do Brasil, seja através da representação de elementos nacionais ou do acesso em si a eles.
Representatividade e acessibilidade
"O maior problema que identifico no mercado de jogos nacional é uma insatisfação dos jogadores locais com essa visão do estrangeiro sobre o Brasil e a nossa cultura", aponta José Messias, pesquisador de jogos e cultura de modificação e professor do curso de jornalismo da Universidade Federal do Maranhão.
"Isso causa sempre aquela estranheza, um certo desconforto que leva as pessoas a fazerem a sua própria versão", declara. A equipe de produção — roteiristas, designers, programadores etc. —, mesmo quando tem boa intenção e tenta evitar estereótipos e erros bobos (o Brasil ser selva, Rio de Janeiro como capital, essas coisas), acaba fazendo escolhas que tornam aquele material distante do que a gente tá acostumado ou do que a gente faria."
Guilherme Vinícius, desenvolvedor de Carros Rebaixados BR e Clube Fixa e que tem se focado em games dessa categoria há mais de dois anos, afirma que nunca foi conectado com a cultura de paredão ou de tuning, e que o primeiro contato aconteceu quando começou a desenvolver os projetos em si.
Ele diz, porém, que "deu pra perceber que a maioria da galera que joga os meus jogos, adolescentes de 12 a 14 anos de idade, se identifica muito com a ambientação do jogo, com como o jogo representa esse mundo"
"Tem muitas pessoas que se identificam com o modo desse jogo representar a realidade. Então muitas pessoas jogam pelo fato de se identificarem com o próprio jogo. A realidade da pessoa talvez seja morar na favela, na periferia. E quando ela se identifica com isso, acaba gerando um bom hype."
O estúdio Sebby, de Rebaixados Elite Brasil, diz que o conceito do game "surgiu de gostarmos muito de carros rebaixados, que é algo que muitas pessoas querem ter, e como a lei não facilita, por que não brincar em um jogo, né?"
A incorporação de características nacionais ao game não foi arbitrária. Segundo a desenvolvedora, o objetivo foi reforçar a cultura local ante ao resto do globo.
"Já que estamos no Brasil, por que não mostrar um pouco da nossa cultura para o mundo? Então botamos elementos que lembram o Brasil, para quem jogar ver que se trata de algo relacionado ao nosso país", explica.
Edu Jacques, professor do Programa de Pós-graduação em Design da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), afirma que apesar da onda recente de desenvolvedores brasileiros que abordam temas nacionais em suas produções — direta ou indiretamente —, "existem diversos assuntos que nos são caros, mas permanecem pouco explorados", como a capoeira, o rap e o skate.
"Conforme avancemos nesta direção é possível que superemos preconceitos a respeito de subculturas e derrubemos linhas imaginárias sobre nosso tecido social."
Como de praxe de subculturas, jogadores desses títulos se reúnem em grupos privados e públicos, em plataformas como WhatsApp e Facebook — E, assim como acontece fora da tela, exibir e ostentar o carro no grau é prática comum e parte essencial da parada.
carros-rebaixados
Um ponto crucial para a popularidade dos "jogos de carros rebaixados" é o fato de serem desenvolvidos e disponibilizados para uma larga variedade de configurações de smartphones, sem pedir um aparelho parrudo por parte do usuário.
No Brasil, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), há mais de 230 milhões de celulares inteligentes ativos, o que ultrapassa o número da população -- que, de acordo com o IBGE, é de 210 milhões de habitantes.
Além disso, a Pesquisa Games Brasil 2019 revelou que 83% do público brasileiro de games utiliza o smartphone para jogar, ultrapassando consoles (48,5%) e computador (42%).
"O que você tinha em 2017, em 2018 de jogo parecido com GTA [principal inspiração de games da categoria] não rodava em celulares mais fracos no geral. Então os jogos otimizados pra rodar em celulares fracos que eram influenciados por GTA faziam muito sucesso", pontua Vinícius.
"O meu objetivo foi pegar uma coisa parecida com GTA, com 171 [jogo brasileiro com fortes inspirações em GTA], que tivesse elementos desse mundo de carros rebaixados e transformar em algo que rodasse em qualquer celular. O que fazia e faz sucesso é o que é bem otimizado para rodar em qualquer celular."
O youtuber Rodrigo Gamer, que contabiliza mais de 300 mil inscritos em seu canal voltado a jogos de carros rebaixados, ônibus e caminhão, ressalta a democratização do acesso aos smartphone como vetor de sucesso do movimento desses games.
"Hoje em dia praticamente a maioria das pessoas tem seus smartphones e podem jogar qualquer jogo, inclusive o próprio GTA com carro rebaixado, com som... coisa que antigamente só era possível no PC, acabou se tornando algo de mais fácil acesso às pessoas com os celulares até mesmos pessoas de periferias."
GTA e gambiarra
Há poucas franquias do entretenimento que o brasileiro ama como GTA. Mesmo sendo fenômeno mundial, no Brasil a série beira ser paixão nacional, com comunidades dedicadas a modificar o game de maneiras inimagináveis e sendo implacável em vendas nos camelôs e onipresente nas televisões das locadoras.
A forte presença da produção da Rockstar Games influenciou diretamente os jogos de carros rebaixados, tanto em estrutura quanto na maneira de se jogar, o que explica a falta de metas, fases e missões.
"Quando eu era criança e jogava GTA: San Andreas, eu não fazia missão. Pegava um carro e ficava dando rolê", revela Guilherme Vinícius. "De vez em quando eu brigava com a polícia ou fazia algumas outras atividades. Mas basicamente eu só usava os carros."
O desenvolvedor acredita não ter sido o único. "Acho que tem muita gente que fazia isso também; ter um jogo só pra você jogar um pouco, perder um pouco de tempo, pegar um carro e sair andando. Acho que essa é uma das coisas que as pessoas gostam de fazer. Não ter um objetivo, jogar por jogar."
Para José Messias, o hábito de dar rolê pelo mapa a esmo está associada à figura do jogador casual, que, para ele, "de casual não tem nada".
"Ele ou ela pode não estar focado nas missões ou no melhor desempenho no jogo, como zerar e pegar os troféus, mas está dedicando um número grande de horas e da sua atenção", declara o pesquisador. "Esse 'puro' exibicionismo [dos jogos de carros rebaixados] também faz parte da experiência do jogo e é fundamental para entender essa importância dos jogos na cultura contemporânea"
Edu Jacques aponta que os games de carros rebaixados incorporam a "cultura da perambulação" de jogos de mundo aberto para dar consistência a objetivos próprios.
"A estrutura dos jogos de carros rebaixados parece consistir basicamente no aspecto sandbox condizente com o intuito de ostentação. Seria inclusive possível chamá-los de simuladores automotivos", afirma. "Por outro lado, as raízes do fetiche automobilístico ultrapassam a manifestação particular desses jogos e mesmo de uma classe social específica."
Apesar da forte inspiração em GTA e produções similares, os jogos de carros rebaixados estão longes de ter o polimento técnico dos grandes blockbusters pelos quais são influenciados. Porém, o que poderia ser visto simplesmente como uma espécie de gambiarra de jogo mundo aberto convencional no estilo Brasil de ser, na verdade revela a relação do jogador brasileiro com o videogame.
"O fato desses jogos parecerem meio truncados mostra como as pessoas são levadas a produzir essas modificações (e outros tipos de remix, paródias), mesmo não dominando perfeitamente esses dispositivos e programas, para poder participar 'da brincadeira'", conta Messias.
O pesquisador continua, dizendo que "por conta das questões de infraestrutura, desigualdade de renda e de formação/educação técnica/tecnológica, os jogadores brasileiros encontram essa forma às vezes meio precária de participar dessa cultura dos jogos". "Para mim, essa é uma questão de acesso/acessibilidade, acesso a cultura, a bens e serviços, ao entretenimento/lazer."
A cultura de tuning e de paredão não dá sinal de que vai retrair tão cedo no Brasil. E as influências dela no desenvolvimento e modificação de games em contexto nacional parecem apenas se tornar mais fortes.
Os desdobramentos dessa relação íntima têm tudo para gerar ainda mais produções no grau.