The Last Guardian | Crítica

Um garoto e seu animal

Por Guilherme Jacobs 08.12.2016 14H15

O que torna um jogo algo especial? São os gráficos modernos, a complexidade de mecânicas, ou é alguma outra coisa? Um jogo pode ter problemas claríssimos e ainda sim ser uma das experiências mais únicas do ano? The Last Guardian levanta todas essas questões.

Por um lado, os defeitos estão lá. A câmera é péssima em lugares fechados, a taxa de quadros por segundo cai de maneiras bizarras e há coisas que deixam claro que este era um projeto feito para o PlayStation 3. Mas depois de terminar o jogo, depois de 16 horas acompanhado de uma misteriosa criatura, essas coisas parecem pequenas diante dos sentimentos que Fumito Ueda e o Team ICO - responsáveis por ICO e Shadow of The Colossus - geraram em mim.

Em The Last Guardian, você acorda numa caverna do lado de uma fera acorrentada, Trico. Sua missão agora é descobrir como foi parar lá e, mais importante, como voltar pra casa. Trico é seu único aliado nesta jornada, e ele é uma tremenda faca de dois gumes. A inteligência artificial que Ueda e companhia criaram para o monstro é fascinante em sua complexidade. Isso não quer dizer, entretanto, que ele é extremamente inteligente.

Jogar The Last Guardian é experimentar um pouco do que é ter um animal de estimação teimoso, que em alguns momentos apenas te encara quando você pede que ele venha até você. Trico, a fonte dos maiores sorrisos gerados neste jogo, é também o responsável por te deixar irritado em diversas situações. 

É uma escolha ousada do Team ICO. Fazer Trico desta forma significa que ele é capaz de te deixar frustrado, de saco cheio, pronto para jogar o controle na parede. Mas também significa que, em nenhum momento, você olhará para ele como algo programado, e sim como uma vida. Por mais que sua mente tenha total certeza que Trico é uma série de variáveis programadas ao longo de quase 10 anos de desenvolvimento, seu coração vai olhar para ele como seu amigo.

E afinal de contas, que amizade não é pontuada por brigas? Há horas em que ficamos cheios um do outro, em que fechamos o celular com raiva e xingamos o outro mentalmente, ou até em alto e bom som. Mas basta viajar por alguns dias ou saber que um deles está sofrendo, que ficamos tomados pela vontade de abraçá-los.  

Quando The Last Guardian acaba e vem a certeza que sua jornada acabou, é impossível não sentir uma grande saudade. Esse sentimento, eu acredito, jamais seria deste tamanho se Trico não se comportasse desta forma. Esse é o grande diferencial do jogo. Sim, a desobediência desta criatura gigante pode ser cansativa e irritante, mas serve um propósito maior que compensa os problemas existentes.  

Não é possível negar que The Last Guardian parece um jogo de PlayStation 3. Sua direção artística é fantástica - é linda a forma como os ambientes detalhados e escuros contrastam com o garoto minimalista e colorido, cujas animações têm a personalidade de algo feito pelo Studio Ghibli - mas os visuais claramente são datados. As mecânicas não são ruins, mas os controles não têm a precisão que jogos modernos oferecem. Além disso, apesar de todo esse tempo de desenvolvimento, existem diversos problemas técnicos.

Braços de personagens entram em objetos, a taxa de quadros cai de formas terríveis em alguns momentos, mas no fim de tudo, assim como seu protagonista, The Last Guardian é resgatado por seu mascote gigante e seus atos de carinho e proteção. Trico, inclusive, é a parte mais impressionante do lado técnico do jogo. Cada pena e pelo parece ter sido desenhado à mão, com cuidado singular, e vê-lo ficando sujo, despenteado e molhado ao longo da história só torna sua existência mais impressionante. 

Trico e o garoto vagam por um mundo fantasioso que lembra, esteticamente, as outras criações do Team ICO. The Last Guardian é composto, basicamente, de salas que servem como gigantes quebra-cabeças onde o jogador deve encontrar maneiras de progredir com os dois personagens. As soluções são interessantes porque a chave para passar de área é uma criatura viva enorme, mas em sua essência, os desafios envolvem portas para abrir, pontes para levantar ou pulos de um telhado para o outro.

Durante a primeira metade da campanha, isso se torna um pouco cansativo, mas quando The Last Guardian finalmente pisa no acelerador, as coisas ficam muito mais interessantes. Mais e mais elementos, como inimigos de diferentes tipos, e ambientes com estruturas diferentes são adicionados na equação, forçando o jogador a pensar rápido.

A segunda metade de The Last Guardian também é o momento em que a história se encontra. Todas as preparações feitas nas horas iniciais começam a se transformar em respostas e cenas intensas. Há diversas sequências dignas de blockbusters, com cenários lindos em sua composição, mas que têm um aspecto intimista porque em seu coração está o bem-estar de Trico, do garoto e sua relação.

Enquanto eles estiverem envolvidos na ação, nós também estamos. Com isso, Ueda vai deixar centenas de mãos suadas e olhos arregalados. Ao fundamentar a importância do gameplay de The Last Guardian na amizade irreverente que comanda sua premissa, Ueda e companhia garantem que cada apertar de botão nas últimas horas do jogo tenha um peso pessoal, uma relevância emocional e uma grande bagagem.

A questão sobre The Last Guardian, é que tudo aponta para Trico e o garoto. Sua parceria é o núcleo de todo o jogo. Eles são as figuras mais impressionantes visualmente falando, eles são as chaves para a progressão tanto do loop de gameplay e quanto das mecânicas individuais. Os mistérios da história nos prendem e funcionam porque estes protagonistas estão envolvidos.

The Last Guardian combina sua direção artística, sua jogabilidade e sua narrativa em dois elementos, e é por isso que todo parágrafo deste texto fala deles. Este é um jogo sobre essas duas figuras, sobre a forma como eles se conhecem, como viram melhores amigos, como sofrem juntos e se diferenciam do mundo ao seu redor.  

Tudo culmina numa conclusão emocionante. Os últimos minutos de The Last Guardian estão entre os momentos mais intensos dos jogos nesta geração. Os riscos e o afeto entre Trico e o garoto só fazem aumentar, e a forma como o Team ICO fecha tudo é perfeita. Ao final da história, eu só queria passar mais algum tempo com estas duas figuras misteriosas e engraçadas. Eu não acho que jamais jogarei The Last Guardian novamente. Esta é uma daquelas experiências que só precisa ser passada uma vez. Eu tive minha jornada, e outras pessoas terão as suas.

The Last Guardian prova que videogames não precisam de gráficos modernos e mecânicas complexas. Estas coisas são boas. Uncharted 4 e Gears of War impressionam em grande parte por sua qualidade gráfica. Final Fantasy XV e The Witcher 3 são o que são por causa da profundidade do seu gameplay. Mas estas coisas jamais substituirão um coração - algo que os jogos acima também têm.

The Last Guardian tem alma, tem um propósito, e sacrifica até uma experiência menos irritante para alcançar este propósito. Ueda tinha uma visão, e ele a entregou. Construindo em cima de ICO e Shadow of The Colossus, o diretor e sua equipe bolaram uma das jornadas mais bonitas, tristes e íntimas dos games modernos.

The Last Guardian está disponível exclusivamente para PlayStation 4. O jogo foi testado em um PlayStation 4 original. Clique no link da plataforma para ver o preço de sua versão digital.

Nota do crítico